Capítulo 21 - Ninguém

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Ninguém


Senti que estava chegando o momento de começar a caçar. Os tiros do dia anterior tinham sido alarmantes o suficiente para entender isso. Sim, o momento havia chegado.

Sabia o que fazer e, pela primeira vez, queria realmente fazê-lo. Sem dúvidas que me atormentassem, sem por quês – os por quês estavam silenciados em minha mente. Agora minha cabeça estava povoada pelos quantos e o onde. Para o quem eu já tinha a resposta que precisava: eram todos Ninguéns, não eram indivíduos, como sempre havia sido e como seria exceto para um deles. 

Levaria todas aquelas mortes com a indiferença calculada que seria necessária para ser suficientemente competente e, embora uma voz que muito me lembrava a da Enne gritasse perguntas aleatórias sobre a individualidade de cada um, eu afastava essas questões com a habilidade de quem tinha um objetivo.

Era quase uma ansiedade calculada, uma... impaciência. Um defeito novo a ser acrescentado em minha lista particular de despropósitos. Embora eu pudesse afirmar que nunca tivera despropósito com mais mérito do que este: só queria que tudo acabasse logo e se, para isso, eu precisasse caçar, então que assim fosse.

Meus dias perfeitamente iguais acabariam, eu sabia. Nada de acordar, comer e me embrenhar em algum canto onde ficaria parado, as pernas formigando, o cheiro da montanha embrenhado em minhas narinas, até avistar um macho ou fêmea em quem atiraria com a habilidade que me fora imposta em todas as inúmeras simulações que havia passado. O cálculo perfeito e simples que me levava àqueles tiros precisos seria substituído por um outro tipo de premeditação.

Era possível que Enne mudasse meu nome eleito de Leopardo para qualquer um mais predatório.

O temor tem um nome?

Esse pensamento me estremeceu, não posso negar, ainda havia uma consciência que borbulhava em minha mente doentia, mas a tela havia sido clara. Ela sempre havia me ensinado. Seguir seu direcionamento, ainda que por vezes o questionasse, tinha se mostrado o melhor caminho em cem por cento das vezes. Seguir a tela significava ter comida, água, saúde.

Ser bom em matar é o que me tornaria Alguém? A julgar pela parca experiência em um mundo que não fosse o cubo, era certo que sim. Era o tipo de competência final avaliada pela tela: sobrevivência, o último estágio.

Sim, isso era lúcido o bastante. 

Lucidez, agarrei-me a ela como quem se agarra aos seus últimos instantes de vida. Sem sinais de loucura, sem por quês, sem risadas histéricas, sem falar sozinho, sem pensar em Enne. Sim, lucidez.

Fiz um pacote cômodo para não interferir na minha agilidade. Coloquei minha lucidez em minha bagagem, não toda ela. Só o suficiente para seguir adiante com propósito, e caminhei para o leste, o lado de onde vieram os tiros recentes.

A montanha serpenteava entre insinuações de caminhos, circundados por pequenas elevações, rochas grandes e platôs curtos. O céu apenas um pouco menos distante do que parecera estar quando o via do vale que intermediava onde estava naquele exato instante e os bosques.

O ruído dos pés às vezes era abafado por grossas camadas de musgo que denunciavam a umidade e a idade daquele lugar.  O vento forte açoitava o cabelo curto, deixando meu nariz gelado e pingando, embora nada disso me impedisse, mesmo com os olhos semicerrados, de manter a atenção em qualquer aproximação, mesmo as que pudessem vir do vale, embora eu tivesse que ser cuidadoso com qualquer tiro que denunciasse minha posição.

Agachava em alguns pontos, enquanto olhava atentamente para todas as direções, o fuzil com a mira de curta distância já preparada em minhas mãos para que não perdesse tempo desnecessariamente. Tinha que deixá-lo em alguns pontos mais íngremes, sacudindo em minhas costas ou tilintando em meus joelhos, enquanto usava as mãos para me apoiar. Meus músculos tensionavam por alguns instantes, enquanto ficava com pouca ou nenhuma cobertura que me protegesse além do colete, mas era um mal necessário, o coração voltando aos batimentos normais assim que retomava a arma e me agachava novamente, avaliando todo o meu raio de alcance para verificar qualquer movimentação.

Havia andado metade de um dia, em um ritmo devagar e cuidadoso, já pensando se devia voltar ou começar a procurar um local para estabelecer um acampamento provisório, quando ouvi barulhos animalescos vindo detrás de uma encosta. Eles vinham acompanhados de pancadas ocas e rítmicas.

Não estava certo se era algum animal, embora não pudesse lembrar de nenhum mamífero grande que poderia estar tão alto na montanha, mas não parecia ser um som que um homo sapiens produziria.

Circundei a encosta com cuidado, segurando os dois fuzis nas mãos. Os passos curtos e a coluna curva não me impediram de escorregar e bater na pedra. Fechei os olhos com força e suspendi a respiração por um instante.

Contei dez segundos antes de soltar o ar devagar, sem nenhum sinal de que o animal interrompera qualquer coisa que estivesse fazendo. Talvez fosse um urso das montanhas? Suas balas seriam o suficiente para isso?

Retomou o trajeto com o mesmo cuidado até conseguir despontar a cabeça em um ângulo que conseguisse ver o bicho.

De fato, era animalesco.

Encarei estarrecido por um instante antes de voltar a olhar para o espaço diante de mim. Meus olhos estavam arregalados e, demorei um instante a perceber, minha boca escancarada em... espanto? Horror? Um homo sapiens, se é que poderia assim ser chamado, estava em cima de uma fêmea. Não sabia dizer se estava desacordada ou morta, mas era certo que não se mexia. Suas pernas estavam afastadas em um ângulo pouco natural. 

O som gutural que ele fazia. Fechei os olhos com força para tentar afastar aquela imagem grotesca da minha cabeça, espantar os sons. Não era inocente, sabia sobre o sistema reprodutor, mas aquilo...

Senti minhas mãos se movendo antes que pudesse de fato acompanhá-las, puro instinto e raiva e temor e nojo. Vi Enne ali, embora soubesse que não fosse ela. Vi um ser que jamais, jamais, poderia ser Alguém. A raiva me cegou, mas com prazer eu o vi cair em cima da fêmea uma última vez, desta vez morto, um tiro certeiro na testa foi acompanhado de outro que estourou sua face.

Andei os dez metros que me separavam do corpo com todos os meus músculos contraídos. Os do rosto formavam uma carranca. Olhei sem me abaixar para aquele cenário grotesco. Gritei sem medo. Gritei para não sufocar, enquanto chutei seu cadáver até ele sair de cima da fêmea, chutei até que rolasse pelo platô como se fosse uma bola de fezes de besouro, sentindo seus ossos quebrarem com a força dos meus pés, até que ele caísse pelo penhasco formado pela montanha e tudo o que eu pudesse ver fosse sua coluna retorcida e sangue espalhado.

Pela fêmea, eu nada podia fazer. Ajoelhei ao seu lado. Seu cabelo cobria toda a sua cabeça em fios curtíssimos, seu rosto estava inchado e muito pálido, apesar da tez morena. Seus olhos escuros estavam arregalados, olhando o vazio. Suas feições não eram tão delicadas quanto as de Enne, mas havia uma força obstinada que era possível ser notada mesmo naquele estado.

Ela estava morta. Morta e usada. Tinha tiros em seu peito, passei a mão em sua cabeça, seu rosto, minhas mãos tremiam. Sua pele estava gelada, embora o sangue do outro, que a emplastara, ainda estivesse quente. 

Era possível pedir perdão pela falha alheia?

Era possível impedir que aquilo acontecesse , ainda que ela fosse Ninguém? Ela não vestia um colete, talvez, se vestisse, nada daquilo teria acontecido. Poderia ter chegado ali e encontrar uma fêmea forte que lutaria comigo bravamente. E ainda assim ela morreria?

Por quê? Por que e porque e por quê? 

Havia dignidade na morte?

Minhas perguntas iriam acabar? Cada vez que elas minguavam eu recebia uma amostra muito realista de que elas não deviam, não podiam. 

"Despropósito! Devia ter trazido toda a minha lucidez."  

Podia questionar e ser competente? 

Teria que descobrir.

Desconhecidos #EFCWWhere stories live. Discover now