Capítulo 27 - Alguém

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A sensação da morte é... estranha.

Não sei o que vem primeiro, o choque profundo ou o surpreendente alívio, logo ambos se misturam, a dor desaparece e tudo o que sobe à superfície é um estranho congelamento, como se todos os demais sentimentos apagassem em um rompante e só isso restasse. Aprendi mais tarde que a isso foi dado o nome de saudade. Saudade da vida não vivida, saudade das expectativas, do que poderia ter acontecido, mas não aconteceu, saudade do que fui.

E imerso nessa sensação que durou uma eternidade, embora tivesse sido só um instante, que despertei.

Primeiro senti um cano na minha garganta que me dava a sensação de engasgamento, a boca estava cheia de um líquido morno e espesso que, ainda que não fosse insípido, não conseguia definir o sabor. A lentidão dos meus pensamentos deu vazão primeiro ao desespero, unido à torrente de lembranças. Enne no acampamento, o tiro, meu sangue se esvaindo.

Minhas condições imediatas rapidamente suplantaram as lembranças do que estava certo que era minha morte. Agitei os braços com toda a força que pude imprimir e logo me percebi socando o invólucro cilíndrico que me cercava, não sei se ouvia um som baixo e oco ao esbarrar meus braços naquela parede de vidro, meus pés se agitavam sem tocar o chão e os movimentos pareciam mais lentos pelo peso do líquido. 

Meus olhos ardiam e eu não conseguia ver nada além de sombras, meus próprios membros eram borrões. Senti meu estômago se contrair repetidamente em ânsias, enquanto eu tossia e me debatia, minha cabeça latejava, sentia o profundo desejo instintivo de puxar o ar pelo nariz, enquanto sabia que aquilo só pioraria a situação.

Sentia os jatos de oxigênio entrando pela garganta e forçando um ritmo de respiração contra o qual eu lutava. 

Percebi uma movimentação do lado de fora do cilindro, sombras que se mexiam agitadas, embora eu nada pudesse ouvir. Quarenta e três segundos depois comecei a sentir a sucção do líquido que preenchia o cilindro. Assim que minha cabeça estava livre e meus pés já não mais flutuavam, retirei desajeitadamente a cânula, tossindo sem parar e machucando a garganta no processo. 

Eu tremia. Não sei se pelo esforço ou pelo súbito frio com o qual me deparei. Estava nu e com aquela gosma cobrindo todo o meu corpo, que parecia menos musculoso do que me lembrava. Abracei meus braços, tentando controlar os tremores, e olhei adiante.

Um macho, uma fêmea e um homo sapiens que habitava entre esses dois opostos estavam diante de mim. 

Vestidos. 

Alinhados. 

Diferentes. 

Com cabelo! 

Estranhos.

Pareciam... humanos. 

Normais, normais demais, embora... o oposto daquilo que eu acreditava ser.

A fêmea me olhava com um olhar embasbacado e surpreso. Ela parecia genuinamente impressionada. Era a mais jovem, talvez um pouco mais velha do que eu, os outros dois se entreolharam. O macho soltou um suspiro do que me pareceu resignação e vi quando o outro lhe deu instruções, sua boca se mexendo de uma forma prática e eficiente, cheia de propósito.

No instante seguinte, o que me parecia vidro levemente azulado, sólido e espesso se desfez e ergui as mãos para me certificar que ele não estava mais ali. Meus dedos, trêmulos, enrugados e hesitantes não encontraram nenhuma resistência e consegui, enfim, olhar com clareza além daqueles três parados diante de mim.

Para todos os lados, até onde minha vista alcançava, via cilindros de três metros de altura com um espaço de um metro entre cada um deles. Formas e sombras flutuavam. Um círculo vermelho com um risco na diagonal, claramente eletrônico, marcavam todos aqueles que podia ver.

A sala era de uma brancura que doía os olhos e pisquei algumas vezes para me acostumar com a assepsia e simetria que me lembrava o cubo e que agora parecia tão estranho, não natural. Senti-me enclausurado, embora estivesse livre do cilindro. Passei a mão pela cabeça e me deparei com os mesmos fios curtos que me lembrava, a sensação dos pelos em meus dedos.

— Como ele sobreviveu? — perguntou a jovem, olhando de maneira questionadora e objetiva para os outros dois. Os três usavam uma roupa semelhante, cinza clara com detalhes amarelos, uma gola justa e mangas longas que cobria a maior parte da pele e lhe lembrava a roupa tecnológica de Enne.

O silêncio prevaleceu como resposta e um arrepio trespassou meu corpo, será que eles sentiram o mesmo? Todos aqueles cilindros redondos com o sinal da morte brilhando vermelho. Um zero definitivo, bipes suaves soavam de tempos em tempos à distância. Seria a morte se aproximando?

— De tempos em tempos aparece algum sobrevivente, ainda não determinamos o motivo, mas o algoritmo é irrisório demais para nos preocuparmos com ele. Chegamos à conclusão que esses espécimes tem o sistema neural e muscular mais resistente que os demais e um nível de competência mais alto do que a média.

Fiquei estático, ouvindo e tentando absorver o que me era dito, enquanto assimilava o choque das últimas lembranças.

Lembranças, o que eram elas, afinal? Tudo o que havia acontecido só se passara na minha cabeça? Senti um som gutural de engasgo soar entre meus lábios, a loucura gritando entre meus pensamentos com as possibilidades, as terríveis possibilidades de se estar vivo, de estar louco, de nada daquilo ter existido.

O som lacônico chamou a atenção para mim, parado naquela base branca  e estranha, e um deles, não saberia dizer qual, preso como estava em meus pensamentos, disse de maneira definitiva antes de dar as costas.

— Notifique que temos mais um neste estágio. 

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⏰ Última actualización: Aug 25, 2018 ⏰

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