Capítulo 24 - Enne

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Enne


Éramos para ativar o sinalizador na primeira noite. 

Foi o que eu fiz assim que localizei a minha roupa, no exato local onde deveria estar, bem próximo ao casulo onde havia sido deixada. Esperei doze horas, como havia sido instruído. Ele não apareceu e também não localizei qualquer sinal. Assumi que algo havia dado errado, que provavelmente ele estava morto, e segui o meu caminho para as montanhas.

Como era esperado, não recebi nenhuma comunicação desde que o último estágio começara. Senti falta daquela frequência nos meus pensamentos que sabia não ser minha. Havia me acostumado a ela nos últimos anos.

Talvez por conta disso, tenha tomado liberdades que não devia, mas que só agora, com a visão daquele Ninguém que eu já não esperava, traziam-me preocupações. Tinha esperanças de salvar Leo. Com o pingente ou com a verdade, provavelmente com a verdade, já que ele seria um Alguém melhor do que eu.

O papel da resistência me cabia melhor. Meu conhecimento médico seria de maior valia fora da Meritocracia do que dentro dela, ou pelo menos fui levada a acreditar nisso, quando minha educação gradualmente tomou essa direção. Leo, por outro lado, munido da verdade, teria mais potencial de fragilizar aquele sistema do que uma pesquisadora.

Esperei a noite cair para ativar novamente meu localizador, torcendo para que ele ainda funcionasse de forma que apenas aquele que devia encontrá-la o fizesse.

A escuridão gelada, salpicada de estrelas e de uma lua estreita, ajudara a me deixar desperta. Os ruídos da noite eram suaves na montanha, mas o frio não. E mesmo com minha roupa, os tremores me acometiam, o nariz pingava com o rosto descoberto, enquanto minhas mãos estavam firmemente presas debaixo das axilas e minhas pernas encolhidas, ajudavam a dar apoio às minhas costas em um canto das pedras onde o vento era mais ameno.

Meus pensamentos eram interrompidos por tiros que se afastavam. Queria poder contar os instantes como Leo, mesmo achando que isso poderia ser um tipo diferente de tortura. Pelo menos saberia quando seria abordada por aquele que se aproximava.

Não tardou muito mais.

Eu nunca tinha escutado um mamute. Uma espécie extinta antes mesmo dos elefantes, mas supunha que o ruído que eles fizessem fosse algo parecido ao Ninguém que se aproximava.

Imaginou a sorte com a qual ele teria contado para conseguir sobreviver por todo aquele tempo sendo barulhento daquela forma. 

Seus passos eram altos e bruscos, sua respiração ofegante audível e ele certamente não tinha qualquer cuidado em carregar seus pertences. Na noite silenciosa, aquilo era pura cacofonia.

— Onde você estava? —Até seu sussurro parecia um trovão ribombando. Era claramente um despropositado. 

Tinha olhos grandes com o branco do olho se destacando em sua pele negra e imponente. Ele era grande, nossa, era mesmo grande. Como tinha conseguido errar um homo sapiens daquele tamanho? Eu certamente não seria uma boa atirado à distância. 

Decidi que não gostava dele.

Esperei que ele conseguisse ver meu olhar de desprezo na escuridão.

— Segui todas as minhas instruções corretamente. Você não teve mérito o bastante para me encontrar no prazo adequado. 

Respondi me levantando, o que não sei se foi melhor, já que em pé nossa diferença de tamanho ficava ainda mais evidente. Ele tinha um odor forte, o que era de se esperar, considerando o tanto que ele correra, mas mesmo assim isso me incomodou. Sua roupa tinha cortes profundos, que indicavam que passara por maus bocados. Talvez sequer estivesse funcionando apropriadamente.

Apesar de sua aparência e de um risco profundo no rosto que começava a cicatrizar, não parecia ter nenhum risco imediato a sua vida. O que era um alívio e uma decepção, sobretudo porque despropositado não pareceu nem um pouco constrangido com a minha resposta.

— Você está atrasado — disse firmemente, o semblante fechado, indicando a seriedade do que havia falado, caso ele ainda não tivesse entendido o que minhas palavras implicavam.

— Cadê o pingente?— ele perguntou, ignorando o que eu havia dito.

— Não localizei.

Mantive meu olhar firme, minha voz com um tom calculado de vergonha. A verdade não seria palatável. Ele poderia inclusive me matar. Sem o pingente, eu seria apenas uma Ninguém que ele deveria eliminar para ser o último.

— As casas já haviam sido vasculhadas quando cheguei até elas. É possível que...

— Rá... — ele disse esfregando a testa e revirando os olhos.  — Você não conseguiu cumprir sua missão, então... talvez se tivesse me esperado...

Tenho certeza que minha expressão facial era muito mais capaz de dizer o que eu pensava, já que não conseguia encontrar as palavras para respondê-lo.

— Você não apareceu.

— Claramente porque tive mais problemas do que você — retrucou, enquanto gesticulava para as próprias roupas e para o rosto.

Olhei para ele, a cabeça curvada, tentando entender a ausência de mérito por trás daquela atitude. Ele era mesmo o eleito para ser Alguém no meu lugar? 

Ri com ironia descarada, propositalmente para que o outro se irritasse. Pensei por um instante o que devia fazer.

— Tenho dois dias até passar pela barreira. Cheguei até aqui sem você e posso conseguir sozinha. Não se preocupe. Faça o seu trabalho que eu farei o meu.

— Não é assim tão simples. Sei que precisam de você, mas se não conseguir...

— Você terá que me matar — eu completei. Sabia o que era esperado de mim. Isso não significava que era o que eu faria, mas aparentemente tinha aprendido a jogar aquele jogo melhor do que o meu concorrente.

Ele acenou com a cabeça uma única vez. O tom solene em seu gesto indicava que havia alguma humanidade por trás de sua postura. Talvez ele não fosse um caso perdido, mas ainda preferia Leo.

— Tenho uma ideia de com quem esteja o pingente. Viu o trajeto cheio de corpos no vale? Esse é o seu maior concorrente. Acredito que esteja com ele, mas certamente não faz a menor ideia de sua função. Não haveria como saber...

— O que você pretende fazer? — ele perguntou, pela primeira vez sua voz em um tom controlado.

Olhei para aquele Ninguém, escolhido pela resistência para ser a última peça para retomada da Meritocracia desde que o sistema fora instaurado. Physis estava errada, concluí, antes de responder.

— Sobreviver.

Desconhecidos #EFCWNơi câu chuyện tồn tại. Hãy khám phá bây giờ