Capítulo 11

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Decidi que detestava a N, ou Enne, foi como passei a chamá-la em minha cabeça. 

Ela gostava de falar. Enne fala mais que a tela nos dias que ela passava todos os trinta e seis mil segundos ligada. Enne falava sobre a paisagem, sobre a arma, sobre nossa aparência e nosso cheiro e o que comemos. Enne só não falava do cubo e de como conseguiu sua roupa. 

Já tínhamos caminhado duas noites inteiras e paramos para descansar ao amanhecer. Brigamos por uma manta que encontráramos no caminho. Eu ganhei, apesar de minha pele de capivara, justificando que ela tinha uma roupa térmica. Mas não fizemos novas grandes aquisições. Ela seguia sem armas de fogo. 

Minhas armas secaram e eu a testara contra um veado-campeiro. A munição estava perfeitamente boa e vedada contra qualquer umidade que pudesse ter entrado por conta da chuva, o que eu atribuía à boa fabricação. Enne, apesar de saber do fato, não parecera intimidada e, sequer tocara no assunto, mais um para lista dos assuntos evitados.

- Você é muito quieto - ela falou em sua voz sussurrada, até o jeito que ela falava me irritava. Nos sentamos em um canto encoberto por uma pedra alta escavada, que estava se tornando comum agora que estávamos mais próximos das montanhas. Já vem visíveis e aparentemente circunflexas, de um modo que me intrigava.

- Ahã.

- Você não sente falta de falar?

- Não - respondi mexendo na carne do veado do dia anterior, que envolvemos com diversas ervas selvagens para que não estragasse. Aproveitaríamos o início da luz do dia para fazer uma fogueira e assar o máximo de carne que conseguíssemos.

O que eu tinha que admitir é que ela fazia perguntas que ia além de qualquer uma que eu poderia imaginar. Como quando ela perguntou como sabiam que estávamos mortos. Fiquei com aquela pergunta por um dia inteiro martelando meus pensamentos, querendo cavar um buraco cabeça à fora.

- Se você for o último a viver e puder escolher seu nome, qual será?

Essa era mais uma daquelas perguntas que colocaram tudo o que eu pensava sob perspectiva. Não só isso, mas fazia minhas mãos suarem de lembrar do que passara por questionar demais nos dias no cubo.

- A tela foi bem clara, quem completar o estágio receberá um nome.

Quase podia vê-la revirando os olhos. Mais um de seus maneirismos que achara particularmente propositado.

- Sim, eu lembro, mas se você pudesse escolher, qual seria?

- Não sei.

Enne não parecia se importar com a resposta, porque emendou:

- Acho que o meu será Aurora. É o meu momento favorito do dia.

- Aurora não é um bom nome para você.

- Por que não?

- Aurora é... cálida, discreta, calma. Você está mais para Tempestade.

Enne me deu um soco no ombro ao ouvir isso, em seguida esticou-se para acender a fogueira. Eu dei risada, confesso que ela me fazia rir com frequência, apesar da minha irritação.

- Vamos, escolha um nome.

- Hummm... eu realmente não sei. Um nome é o mesmo de nomearmos as coisas? - Isso me deixava confuso, eu não entendia como não a colocava na mesma posição. Tendo sido sempre Ninguém, sem saber de nada além disso, como eu poderia me nomear? Isso era... sem mérito, como Enne dizia. - Qual nome você me daria?

A fêmea pareceu surpresa com a pergunta. Ela se empertigou, seu olhar desfocado e seus lábios entreabertos, olhando através dele.

- Leopardo - ela disse simplesmente, com muita seriedade.

- Leopardo? - Perguntei indignado, eu não tinha me visto muito bem, mas podia dizer que não parecia um felino. 

- Sim, Leopardo. Você é solitário. Silencioso, mas veloz e, bem... mortal. Acho que lhe cai bem.

Ri um riso quebrado.

- Solitário? Tudo o que conhecemos foi solidão. 

Ela então me olhou. Um olhar profundo, como ainda não tinha visto, cheio de significados, o único óbvio era o temor. 

- Sim... mas você gosta disso.

Essa foi a primeira vez que a vi demonstrando medo e foi mais assustador do que vê-la atirando uma faca certeira a cem metros por segundo.

Comemos em silêncio que, apesar de desejado, não fora bem-vindo. Apaguei a fogueira assim que a carne estava bem assada e nos empanturramos lambendo a gordura dos dedos e guardando todo o resto embrulhadas em grandes folhas de bananeiras.

Apesar de termos nos unido há pouco, encontramos um ritmo onde cada um tinha sua função e a desempenhava naturalmente. Enne dormia primeiro. Eu ficava de vigília, subia em árvores, colhia o que achava, colocava armadilhas e caçava.

Ela já havia dormido, ativando sua roupa esquisita, a cabeça enfiada entre os braços em concha. Eu ainda cavava um buraco, sentir que tinha um espaço delimitando meus movimentos era mais confortável, mas ia além disso. Eu colocava todos os meus pertences embaixo de mim. Enne era forte, mas não conseguiria me roubar sem que eu acordasse.

Ficava imaginando se ela estava aguardando um momento oportuno para fazer justamente isso, mas ela ainda podia me matar com a faca que recebera após matar seu oitavo homo sapiens. Como ela disse, eu nem saberia.

O cheiro de carne assada ainda impregnava o ar, bem como minhas roupas, quando subi a árvore mais alta próxima de nosso acampamento. Mais três quilômetros para o sudeste, talvez a metade entre onde estavam e as montanhas, havia um conjunto de construções. Estas eram mais altas e robustas, além de serem quatro ou cinco ao todo, com cores diferentes entre elas. 

Ali haveria armas, com certeza. Era o primeiro local promissor, desde aquele que encontrara há onze dias. Enne dormia. Podia chegar lá em trinta minutos e voltar. Ou ainda deixar Enne para trás e seguir adiante. 

Olhou ao redor. Viu um deles a sua esquerda, um pouco à frente de onde estava. Não conseguia distinguir se era uma fêmea ou um macho. Se estivesse um pouco mais em diagonal poderia ter cruzado com eles. Despropósito, não podia esperar!

Desceu da árvore o mais rápido e silenciosamente que conseguiu, correu para o sul, do lado oposto de onde quem quer que fosse chegaria. Sentiu sua adrenalina aumentar. Estava caçando, talvez o nome Leopardo lhe aprouvesse, afinal.












Desconhecidos #EFCWWhere stories live. Discover now