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Donnie

Vontade de tomar sorvete. Foi a primeira coisa que eu senti ao sair do consultório do Dr. Bethany. Eu queria tomar sorvete, daqueles que vendem em carrinhos na rua, os mais vagabundos. Depois de duas horas conversando com o médico sobre como era a minha rotina na faculdade, comentei que todos os dias, minhas amigas e eu tomávamos um daqueles sorvetes, com a desculpa que só algo tão ruim pra fazer nosso cérebro funcionar e entender todas as disciplinas. Dr. Bethany perguntava calmamente sobre diversas coisas, mas evitava falar sobre Michael, eu sabia que fazia parte da terapia, ir aos poucos, até chegar ao meu ponto fraco. A morte prematura do meu namorado.
Eu respondia as perguntas do médico de forma silábica no começo, mas com o tempo, sem perceber, eu divagava contando historias aleatórias á ele.
Essa ultima consulta tinha sido a mais leve de todas, pois eu já acostumara com o senhor de 60 anos que sorria levemente enquanto eu contava alguma historia idiota, e dessa vez ele me pediu que falasse sobre os meus professores, aulas, amigos, coisas que eu comia no campus da faculdade... Foi naquele momento que eu percebi como sentia falta de tudo aquilo. Eu estava com saudade das minhas amigas doidas que só falavam pornografias (por diversas vezes elas brincavam dizendo que abusariam do Michael se eu não prestasse mais atenção nele), sentia falta dos meus amigos gays, que tentavam de todas as maneiras negar que tinham um caso, sendo que todas nós sabíamos que eles eram um casal, sentia falta da correria e gritaria que fazíamos em dias de prova e entrega de trabalhos... Então me lembrei do sorvete de baunilha de péssima qualidade que eu adorava. Sai do consultório e dei de cara como um entardecer lindo de primavera, não resisti e caminhei lentamente em direção ao parque que ficava á cinco quarteirões do hospital.
Era estranho andar sozinha pela rua depois de meses trancafiada no meu quarto. Eu tinha perdido o costume de ver pessoas, e isso me assustou. Que merda eu estava fazendo com a minha vida?
Cheguei ao parque e vi dezenas de crianças correndo e gritando enquanto revezavam os balanços e escorregadores. Desviei deles e sentei em um banco mais afastado, que dava vista para a pista de corrida e ciclovia. Peguei meu iPod na bolsa e selecionei a playlist mais animada possível: M.I.A, Time To Pretend, MGMT... Depois de vários minutos, avistei um carrinho de sorvete e imediatamente um sorriso apareceu no meu rosto. É, eu ainda podia sorrir.
Comprei o tão desejado sorvete, chocolate e baunilha, e voltei para o meu banco; comecei a criar historias para as pessoas que passavam por mim, tentando adequar a aparência delas com a musica que eu escutava no momento.
Demorei a perceber que meu celular estava tocando. Essa era outra novidade: eu voltara a usar o aparelho, afinal, não precisa mais fugir das pessoas, ela já tinham me esquecido. Só minha mãe, Celyn, minha madrinha e Josh me ligavam, mas só para saber se a consulta já tinha acabado ou se eu precisava de carona.
- Oi mamãe – atendi com um pouco de sorvete na boca.
- Donnie? Onde você tá? Sua voz está estranha! Faz uma hora que sua consulta acabou... Você devia estar em casa – ela falava sem parar pra respirar – Você está bem, meu amor?
- Mamãe! Posso responder uma pergunta de cada vez? – sorri fraco, e ela respondeu que sim – Está tudo bem, se acalma. Eu tô bem. Relaxa.
- Desculpa o desespero, filha... É só que eu fico preocupada com você andando sozinha pela cidade... Qualquer cinco minutos de atraso já são o suficiente pra eu ficar doida – ela ri fraco no fim da frase e eu a acompanho – Onde você tá?
- No parque que fica no fim da rua do hospital... Você está trabalhando?
- Acabei de chegar aqui, ainda tenho um tempo antes do plantão... Quer que eu vá ai te fazer companhia? Que barulho é esse? O que a senhorita esta comendo? – ela perguntou depois de me ouvir tentando sugar uma gota de sorvete que quase melara minha mão.
- Eu tô tomando sorvete porcaria – eu disse quase sorrindo e ela riu – E não precisa vir até aqui, eu já estou indo embora... Acho que vou tomar mais um sorvete e já vou.
- Ok, mas se cuida, tá bem? Pega o taxi e vai direto pra casa. Qualquer coisa, me liga, ou liga pra casa, a Celyn está lá – alguém a cumprimentou e eu esperei até ela voltar a falar comigo – Desculpe, era a Leslie, te mandou um beijo.
- Manda outro pra ela... E pode deixar que eu ligo pra vocês – brinquei com o palito do sorvete e completei – Na verdade, vou ligar pro Josh e ver se ele quer assistir um filme.
- Isso é ótimo, filha! Ele vai adorar o convite! – mamãe quase gritou de alegria – Porque vocês não vão ao cinema?
- Hum, não... – senti aquela sensação estranha de vazio de novo – Acho que prefiro ver em casa mesmo.
- Você é quem sabe, mas liga pra ele! – ela parecia feliz em saber que eu tomaria a inciativa pra fazer alguma coisa normal – Estão me chamando, preciso ir. Nos falamos mais tarde. Eu te amo. Beijo.
- Também te amo.

No fim das contas, Josh me convenceu a ir ao cinema. Pedi que ele me encontrasse no parque, depois de meia hora ele apareceu do outro lado da pista de corrida, andando na minha direção, me olhando de um jeito brincalhão. O céu começava a escurecer, e aquilo parecia favorecer Josh: ele estava tão bonito. Como eu nunca tinha visto antes. De jeans escuro, tênis branco, camiseta cinza e os cabelos úmidos completamente bagunçados. Percebi que algumas meninas olhavam e comentavam sobre ele, quando ele contornava a pista de corrida. O sorriso dele aumentou ao se aproximar, então disse alto:
- Meu Deus, estou tendo visões! Stella Roe tomando um sorvete? Por vontade própria? – ele riu quando eu revirei os olhos e mostrei a língua.
- Na verdade, esse é o quarto sorvete – confessei e sorri sem graça.
- Quatro? Sua gorda! – ele sentou ao meu lado e beliscou minha barriga – Isso vai tudo pras suas coxas! – disse numa voz afetada e eu ri fraco.
- Seu gay! Aposto que você tá com inveja do meu físico impecável – dei uma cotovelada nele e apontei para o meu corpo, visivelmente mais magro do que era.
- Claro que tô com inveja! Agora eu quero sorvete, pra ficar com esse corpo maravilhoso, que nem você – ele continuou fazendo graça, eu ri baixinho e dei um tapa leve na cabeça dele.
- Seu cabelo tá uma catástrofe – comentei sem perceber. Ele me olhou de lado e sorriu.
- Eu sei, não achei um pente então só passei a mão – percebi nas entrelinhas que ele teve de se arrumar rápido, com medo que eu desistisse da ideia do cinema. Sorri ao entender isso – Já disse que você fica até bonitinha quando sorri?
- Nossa, que elogio vindo de você – me surpreendi por entrar na brincadeira, fingindo emoção ao colocar a mão sobre o coração – Estou lisonjeada.
- Só não acostuma – ele riu e pegou os fones que estavam no meu colo, colocou um no próprio ouvido e o outro no meu – Vamos ver que meleca você tá ouvindo.
- Meleca? Meleca? Eu ia arrumar o seu cabelo, mas depois desse insulto, você vai continuar com cara de maníaco – cruzei os braços e endireitei o corpo, ficando de frente para a pista de corrida.
- Era brincadeira, nervosinha – ele me abraçou pelos ombros e apertou seu nariz contra minha bochecha – Até que esse... Esse... O que é isso? – ele pegou o iPod e leu – Those Dancing Days é legal. Tem uma batida boa.
- Nem tenta me comprar, não vou arrumar seu cabelo – mantive a pose, sem olhar pra ele... Meu coração parecia que ia sair pela boca. Era tão bom saber que eu ainda podia brincar e rir.
- Por favor? Eu adoro o jeito que você penteia meu cabelo... Vai Donnie! – ele fez manha e beijou meu maxilar. Rolei os olhos e virei para ficar de frente para Josh. Ele sorriu e fechou os olhos, inclinando a cabeça na minha direção, mas sem tirar o braço que me envolvia.
Peguei um pequeno pente na bolsa e comecei a passá-lo devagar pelo cabelo do Josh. O tempo todo ele se manteve de olhos fechados, parecendo curtir a musica que tocava (Space Hero Suits) e um leve sorriso nos lábios. Guardei o pente e passei a ajeitar os fios com os meus dedos, dando um ar de mais despojado; por alguns segundos mexi nos cabelos da nuca de Josh, e vi quando sua pele se arrepiou, um instante depois ele abriu os olhos, sem sorrir, e me encarou. Não entendi nada. Meu coração disparou sem motivo algum. Josh estava perto demais. Concentrado demais. Minhas mãos ficaram estáticas onde estavam, ou seja, ao redor do pescoço dele. Nos olhamos pelo tempo suficiente para minha respiração começar a ficar pesada, e poderia jurar que a dele também estava. Maluquice!
De repente algo diferente passou pelos olhos dele, então Josh fez uma careta engraçadinha, segurou meu rosto com uma mão e mordeu minha bochecha.
- Você tá tão bonitinha com esse vestido – ele comentou ao se afastar de mim, olhando meu vestido rodado de estampa colorida – Me lembrou daquele vestido que você usou na festa da Susan Whitaker.
- Idiota! – dei um soco em seu braço, não querendo lembrar um trauma de infância, enquanto ele ria.

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