Enfermeira

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_ Enfermeira, me passa o bisturi _ouvi a voz do doutor abafada pela máscara e obedeci.
Porque será, que em todas as vezes em que eu voltava ao passado, eu era humana?
Fui tomar um ar depois da cirurgia. O ar fresco da madrugada me fazia sentir a vida pulsando, dentro de mim, com mais nitidez.
Os arbustos do jardim se moveram fortemente e eu prendi a respiração assustada. Fiquei atenta, o coração em disparada. Eu não sabia que bicho estava ali, mas era grande. Muito grande.
Cheguei mais perto. O porquê, eu não sei. Deveria ter corrido para dentro feito uma louca, mas não fiz. Ouvi o rosnar baixo mas imponente quando movi o galho para vê-lo. Gargalhei involuntáriamente ao constatar que era um lobisomem pardo como o Chris. Estava desacordado e ferido. Muito ferido. Usava uma calça de moletom larga e apenas isso.
Fui para dentro do hospital e voltei com material para os primeiros socorros. Ali escondidos pelas folhagens, eu suturei veias e carne, coloquei ossos e tendões em seu lugar e fechei os curativos. 
Quando o corpo começou a se recuperar ele voltou para a forma humana e despertou. Que mundo estranho este! O lobisomem que eu salvei de morrer de hemorragia era o Chris.
Segurou o meu braço urgente _ Não conta _ pediu.
_ Está tudo bem. Não vou contar para ninguém. Você consegue levantar?
Negou com a cabeça.
_ Você consegue manter a sua forma humana? Se conseguir, eu posso te levar para dentro do hospital.
_ Não. Para o hospital não.
_ Eu moro aqui perto _ sugeri e ele afirmou _ Já volto.
Fui até o Lucas que era o faz tudo. Pedi uma carona até em casa. Expliquei que um primo distante havia levado uma surra, mas que não queria ir para o hospital. Ele me ajudou a deitar o Chris no banco detrás do seu carro no embarque e a deita-lo na minha cama no desembarque.
Dei uma caixinha para ele e me despedi. Voltei para o Chris, levando analgésicos e anti-inflamatórios que ele bebeu.
_ Obrigado _ buscou o meu olhar.
_ De nada, lobo _ sorri _ Você está bem longe de casa, não é? Como veio parar aqui?
_ Você me conhece?
_ Quem viu um lobo, viu todos.
_ Você não cheira a lobisomem.
_ Por que não sou um. Meu nome é Helena Pin.
_ Filha do David Pin?
_ Sim _ deixei os remédios e o jarro de água no criado mudo e sentei ao seu lado checando se os curativos não abriram no transporte. 
_ É um grande prazer conhecer você. Só não queria que fosse nestas circunstâncias. Meu nome é Christian Anghel. Me chama de Chris.
_ Chris. Você faria o mesmo por mim.  Você quer que eu ligue para alguém para avisar que você está bem?
_ Sim, por favor.
Escreveu o número no caderno com a caneta que eu lhe dei.
_ Já volto.
Voltei para a cozinha, liguei para a Mama, avisando, e preparei uma senhora refeição para nós dois. Sabia que ele gostava de comer. Eu saí antes do meu turno acabar. Com certeza teria um desconto no meu salário. Mas valeu a pena. 
Voltei para o quarto com uma bandeja com os nossos pratos já feito e uma garrafa de vinho tinto gelado e as respectivas taças.
O Chris se apressou em abrir a garrafa _ O que estamos comemorando?
_ Ao nosso encontro oportuno. Salvei a sua vida, meu rapaz.
_ Eu serei eternamente grato.
_ Não me respondeu. O que você está fazendo no Brasil?
_ Longa história. Fomos atacados por um clã. Nem notei que estava tão longe de casa até acordar naquele jardim.
_ Haviam outros com você?
_ Sim, mas caíram logo no primeiro ataque e ficaram para trás. Parecia que os sangue sugas só queriam a mim.
_ É assim que você os chama? _ notei que o Chris sempre evitou nomear os vampiros perto de mim antes.
_ Quando estou de bom humor.
Comia como um esfomeado. Lavei a louça depois do jantar e tomei um banho antes de dormir. Não costumava me vestir e tive que vestir uma camisola que ganhei no amigo oculto do hospital. Era uma coisa rosa e cheia de lacinhos.
Corei diante do olhar do Chris, mas o ignorei e apaguei a luz. Entrei nas cobertas deitando ao lado dele.
_ Ei! O que você está fazendo?
_ Deitando para dormir _ soei mais séria do que óbvia.
_ Não pode dormir em outro lugar?
_ O que? _ achei graça.
_ É só que você é uma mulher e...
_ Relaxa gostosão. Eu não vou te agarrar.
_ Não é isso.
_ Christian, eu não tenho outro lugar para dormir. Não sei se você reparou, mas eu moro em um ovo. 
_ Sinto muito. Me desculpa. Putz! Como eu fui ingrato.
_ Faz o seguinte.
_ O que?
_ Dorme, Chris. Estou cansada e você tem que se recuperar. 
_ Tudo bem. Me desculpa. Boa noite, Helena.
_ Boa noite, Christian. Se precisar de mim, e só me acordar. 
Acordei com os os olhos castanhos sobre o meu rosto. Limpei a baba que caía da minha boca, irritada por ele estar me olhando.
_ Você está bem?
_ Melhor que ontem.
_ Porquê está me olhando? Não conseguiu dormir?
_ Acertou.
_ Me diz que isso tudo não é medo de eu te agarrar a noite _ brinquei.
_ É que você é uma distração tremenda.
Isso foi um elogio!? Vamos pesar na balança os prós e os contras para o Chris se interessar por mim.
Contras
1- quando ele me conheceu, no passado, eu era a mistura de linda vampira com uma lobisomem sem pêlos, com aparência de dezessete anos. Agora eu era humana e tinha vinte e oito, acho.
2- Eu tinha uma deficiência genética que me impedia de ser como ele, e eu sempre seria humana.
3- em comparação com qualquer garota que já caiu nas graças do Chris eu não tenho a menor chance.
Prós
1- Salvei a sua vida.
Agora voltando para a cena _ Eu ronco?
_ Não _ gargalhou _ Você é linda.
Engasguei com a minha própria saliva e tive uma crise de tosse por conta do tamanho do susto que eu levei ao ouvir isso. 
Sentei na cama. O Chris me entregou um copo d'água e batia de leve nas minhas costas. Também sentado agora.
_ Você tá legal? _ quis saber quando eu parei de tossir.
Afirmei com a cabeça _ Acho que eu não entendi o que você me disse.
_ Disse que você é linda. Fica difícil dormir com você do meu lado. Ainda mais usando isso sem nada por baixo.
Segui o seu olhar e constatei que a camisola era transparente. Não notei isso antes. Puxei o lençol sobre mim e o encarei _ Desculpa, Chris. Eu não notei.
_ Por nada, acontece. 
Ele alcançou um penhoar no cabide de parede e entregou para mim.
_ Obrigada _ vesti sobre a camisola e levantei indo para a cozinha.
Coloquei a água para o café no fogo e fui fazer a minha higiene, no banheiro. Era por volta das treze horas. A minha aparência estava péssima. Parecia cansada. O ano era mil novecentos e cinquenta. Era admirável que o Chris já tivesse a aparência que tinha quando eu o conheci em dois mil e seis. Parece que ele não era tão jovem quanto eu pensei a minha vida toda.
Quando voltei para o quarto, ele se colocava em pé, apesar da dificuldade.
_ Cuidado! Vai arrebentar os pontos _ o apoiei sobre o meu ombro _ Posso saber o que você pensa que está fazendo?
_ Preciso ir ao banheiro.
_ Pode usar a comadre.
_ Prefiro morrer!
Gargalhei sem querer, o encabulando e ele ficou calado. Ao chegar no banheiro ele se trancou lá.
Eu já havia posto a mesa do café, quando ele saiu do banheiro e se apoiou na porta. Deu um passo para a mesa e eu o ajudei a completar o percurso. Sentou na cadeira e lamentou a dor que sentia com um gemido baixo.
_ Fizeram um grande estrago em você.
_ "Lobo bom é lobo morto". Mas eu matei alguns deles também.
Sorri da irônia nisto tudo.
_ Isso te diverte _ pareceu irritado.
_ É só a irônia por trás disto. São duas espécies irmãs, deviam entrar em acordo.
_ Estas bestas não pensam, eles só matam.
Servi café para ele e depois para mim. Sobre a mesa, haviam bolachas, bolo, biscoitos e pão de queijo que eu mesma fiz. Fazia a cada duas semanas, pois eu não comia muito. 
_ Você cozinha bem _ disse enquanto comia.
_ Obrigada _ bebi um gole de café.
_ Porquê você não está casada.
_ Não sou interessante.
Parou de comer para me olhar por alguns segundos. Pareceu que iria dizer algo, mas só me olhava.
_ O que é?
_ Sabia que os humanos enxergavam mal, mas agora sei que são cegos.
_ Não precisa ser gentil. Eu tenho espelhos.
Notei o quanto eu parecia triste, naquela época. Parecia triste para mim mesma. Talvez eu lamentasse este momento. 
Porque eu encontrei o Christian se eu não poderia cativa-lo? 
Se os acontecimentos estavam se ajustando para ficarmos juntos, por quê isso não aconteceu como antes?
Eu não via um jeito da nossa história ser feliz.
Senti um grande calor sobre a minha mão e olhei. O Chris havia posto a sua mão sobre a minha que desaparecia abaixo da mão dele. Levantei o olhar para o seu.
_ Quer conhecer a Romênia? Acho que você iria adorar o lugar.
Fiquei surpresa _ Eu não sei. É bem longe _ puxei a minha mão e peguei minha caneca.
_ Longe de que? O que te prende aqui?
Ponderei por um segundo _ O meu emprego.
_ Consigo um emprego para você. Uma casa. Você vai poder ficar por quanto tempo quiser. Estou esquecendo de algo?
_ Você é dono da Romênia?
_ Não, mas sou filho da dona _ sorriu convencido _ Pode aceitar, não vai se arrepender.
_ Porquê você se importa?
_ Gratidão, Helena. Pensa nisto. A Romênia é linda, o clima é agradável.
_ Agradável? O lugar vira uma geladeira no inverno.
_ Eu aqueço você.
_ Você vai estar pegando alguma menininha.
_ Pegando? O que isso quer dizer?
A sua confusão era bem compreensível, este termo não existia naquele tempo.
_ Namorando.
_ Eu fui chutado _ ficou triste.
_ Sinto muito.
_ Não foi nada demais. O meu rival era o alfa. Eu não tinha chance.
Fiquei revoltada ao ouvir isso. O Alexandre era irmão de criação do Chris. Ele deveria ser mais... irmão.
_ Não fica triste. O alfa é um idiota. A sua ex-namorada vai se arrepender.
_ Não sei. Mas não importa. Ela se foi.
Lembrei de como gostava da Romênia _ Sabe, Chris. Eu aceito a sua gratidão.
Sorriu abertamente pela primeira vez.


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