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Cora deu outro gole da garrafa de cerveja que estava segurando.

A mesa estava bem cheia e as pessoas sorriam animadamente. Discutiam se seria viável que algum deles pudesse largar o emprego e passar um ano inteiro viajando pelo mundo.

"É só saber se programar e juntar dinheiro por um tempo. A gente acaba gastando bem menos por dia do que imagina." disse o rapaz moreno, ajeitando os óculos no rosto.

"Mesmo que você tivesse como se bancar durante um ano, o que faria quando voltasse? E as contas se acumulando embaixo da sua porta?" a garota loira riu.

"Talvez quem viaja muito acabe levando uma vida mais simples e não tenha tantas contas pra pagar..."

"Ah, Cora, você está sendo ingênua. Espero mesmo que nenhum de vocês esteja pensando em largar a Radiant."

A discussão foi interrompida pela chegada de mais um integrante à mesa. Marco estava atrasado. Cora aproveitou a oportunidade para levantar sem ser notada e se esgueirar para o banheiro. O El Chupacabras havia se tornado o local oficial de encontro da empresa nas sexta-feiras pós expediente. Mesinhas redondas rodeadas por cadeiras em acolchoado vermelho, pouca luz e muita bebida. As paredes eram coloridas, desenhadas com temas típicos do México, e havia dezenas de cactos e sombreros espalhados pelo espaço. O dono, na verdade, era descendente de bolivianos, mas o México parecia estar na moda entre os jovens, e um pub mexicano deveria ser imbatível para a concorrência. No entanto, o sucesso do El Chupacabras se devia verdadeiramente ao baixo custo de suas bebidas.

O banheiro feminino seguia a mesma linha decorativa do salão principal. Cactos, azulejos com desenhos de pimentas e uma foto em preto e branco de três mariachis pendurada ao lado da porta.

Cora jogou um pouco de água no rosto e se olhou no espelho. Ela estava tão cansada...Já fazia seis meses desde que deixara a casa dos pais no Brasil e se mudara com uma pesada mochila e alguns livros para Catslake City. A pequena, desconhecida e totalmente esquecida nos mapas, Catslake City, Reino Unido. A cidade possuía uma expressiva área rural, apesar do inverno quase eterno, e um centro comercial e residencial. Suas ruas eram tortuosas e estreitas, os casarões amontoados uns sobre os outros sob o céu cinzento.

No entanto, foi em Catslake City que, alguns anos atrás, dois irmãos resolveram se juntar numa garagem e fundar um pequeno negócio familiar, desenvolvendo jogos para computadores e carregando a bandeira do software livre. Hoje, a Radiant possui uma sede de cinco andares, estacionamento e restaurante próprios. Apesar dos fortes apelos de seus acionistas a fim de transferir a empresa para alguma cidade mais tecnológica, - "Por favor, vamos nos mudar para o Vale do Silício e andar de bicicleta durante todo o verão!"- os dois irmãos pareciam decididos a ficar. A pequena Catslake City se viu então inundada pelo sotaque de programadores, designers e analistas de todas as partes do mundo.

Além disso, o programa de formação de trainees Radiant fora uma bela cartada: jovens em início de carreira, ávidos por aprender, cheios de ideias e dispostos a aceitar salários modestos. Durante dois anos estes jovens seriam treinados e moldados, e os melhores poderiam ocupar novas vagas na companhia. Já estavam formando a terceira turma, e as inscrições continuavam vindo aos milhares. O El Chupacabras foi um dos estabelecimentos beneficiados com a chegada dos trainees, que se amontoavam nas mesas do pub toda sexta-feira, religiosamente. E Cora estava entre eles.

A garota analisou seu reflexo no espelho. O cabelo, de um ruivo fechado e acobreado, caía ondulando pelos seus ombros até terminar em cachos largos. A pele era clara, ligeiramente bronzeada, e os olhos eram castanhos, escuros e profundos. Ela estava com olheiras. Olheiras e sardas, suspirou. Ajeitou seu suéter listrado por cima da calça jeans.

Tudo o que Cora queria era sair dali e ir para casa. Quando se inscreveu no programa da Radiant, jamais imaginara o que a aguardava, o quão difícil poderia ser a vida adulta, sozinha num país estranho, tendo de lidar com toda a pressão do cargo que exercia. Não que ela não tivesse disposição. Pelo contrário, Cora havia passado por toda uma bateria de testes, entrevistas e dinâmicas antes de conseguir sua vaga, tinha lutado muito por ela.

Também gostava de sua independência recém adquirida, apesar de ainda chorar secretamente pela falta da família, principalmente quando falava com eles ao telefone. O fato é que haviam semanas boas e semanas ruins. E em qualquer uma delas, Cora estava dedicando cada fibra de seu ser ao trabalho. Mas... trabalhar até quando? Tudo isso pra que? Será que isso a faria feliz? Cora sentia como se estivesse perdendo alguma coisa, como se a vida estivesse passando sem que ela capturasse algum detalhe importante que lhe desse significado. A única coisa que ela sabia, com certeza, era que aquela semana havia lhe deixado esgotada. Seus pequenos momentos de relaxamento consistiam apenas em fugir para o banheiro mais próximo e se perder em pensamentos.

Mas, talvez, o verdadeiro motivo que levara Cora a se esconder no banheiro tenha sido ele. O garoto sentado três mesas depois da sua, sozinho. Ele havia chegado quinze minutos depois que ela e os amigos. Tinha traços asiáticos, provavelmente descendente de japoneses, era alto e magro. Seu nariz era fino e bem reto, o cabelo deveria ficar mais ou menos na altura dos ombros quando solto, mas estava preso em um pequeno rabo de cavalo mal feito no topo da cabeça. Usava um moleton preto, calça jeans e tênis.

Cora adorava observar pessoas desde pequena. Mesmo na escola, preferia sentar nos cantos da sala, de onde podia observar todos. Se divertia interpretando suas expressões faciais e trejeitos, sentia uma satisfação enorme em tentar adivinhar as histórias escondidas sob cada gesto, cada ruga. Amigos e familiares sempre ficavam admirados com a capacidade da garota em reconhecer quando estavam tristes ou preocupados. Por isso, não era nenhuma novidade ter reparado no rapaz: ela repararia em qualquer pessoa que passasse por aquela porta.

No entanto, Cora não suportava ser observada. Se sentia como um animal acuado que não sabia como se portar, deixava cair coisas, perdia o foco no que estava fazendo. Assim que o rapaz asiático havia se sentado, a sensação começara. A sensação morna em sua nuca, a certeza de que alguém prestava atenção em cada um de seus movimentos. Aquilo era extremamente desconfortável. Os minutos passavam e a sensação continuava presente. Havia se virado na cadeira algumas vezes, e ele sempre parecia estar muito entretido em apenas olhar o vazio e beber sua cerveja. Mas a garota sabia que ele a observava. Ela tinha certeza.

Bem, não poderia ficar naquele banheiro para sempre. Respirou fundo e puxou a porta, dando uma boa olhada no salão principal. Seus amigos continuavam sentados lá, provavelmente rindo de alguma piada. Nenhum sinal do garoto.


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Dons de Inari - Parte IWhere stories live. Discover now