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Enquanto se beijavam, explorando cuidadosamente os lábios um do outro, Cora não conseguia deixar de se questionar: porque não fizera isso há muito mais tempo?

Haru tinha um gosto quente, doce e amadeirado, resquício das muitas doses ingeridas na festa. Seu cheiro era maravilhoso, o toque atencioso e gentil, as mãos entrelaçadas em sua cintura. Cora não saberia dizer exatamente como ele era capaz de curá-la tão rápido de suas angústias, ou de causar tantas reações em seu corpo. A garota podia sentir a energia vibrando em seu peito, a mesma explosão de alegria que a fazia correr em forma de raposa. Aparentemente, seu espírito de kitsune não tinha o mínimo ressentimento pelo tanuki, contanto que ele não parasse de fazer o que estava fazendo.

E, para seu desagrado, ele parou quase que imediatamente. A boca de Haru afastou-se dela num movimento rápido, dando lugar à visão de um semblante preocupado. O garoto a olhava em silêncio, os lábios entreabertos cobertos por um vermelho vivo, viscoso.

"Isso é sangue?" ela perguntou assustada, momentaneamente insegura.

Antes que pudesse obter uma resposta, o mundo de Cora tornou-se pura escuridão.

*****

Acordou num rompante, já impulsionando as patas para levantar. Levou apenas alguns segundos para compreender o que acontecera. O cheiro de maresia entrou pelo focinho inquieto como que para confirmar o que o cérebro já sabia: ganhara sua terceira cauda.

A praia não mudara nada desde sua primeira visita, exceto que agora o cenário era tomado pela noite. A areia brilhava sob a luz das estrelas, e as ondas pareciam quebrar com mais força, marolas enegrecidas de bordas prateadas pelo luar estourando umas sob as outras. Um vento frio soprava da terra, trazendo o som das folhas dos coqueiros.

A escuridão não era um empecilho para seus olhos de raposa, e Cora esquadrinhou a orla, admirando a beleza daquela noite, ali exposta somente para ela. Não tinha lembranças de como aquele lugar era bonito após o pôr-do-sol, não ligava para isso quando menina. Porém, de alguma forma, a imagem permanecera guardada em seu subconsciente.

Ainda acalentada por aquela visão, a raposa emitiu um guincho orgulhoso, virando-se para examinar suas caudas, agora trigêmeas. Havia conseguido, havia montado sua emboscada e capturado sua presa. A terceira cauda se manifestara em seu espírito.

De repente, um grito, ou um ganido, atravessou a calmaria da noite. A raposa vermelha deu um pulo desajeitado, caindo agachada na areia, os pelos da nuca arrepiados em alerta. O som parecia vir em parte através do ar, em parte de dentro da própria cabeça. Incrivelmente, a voz parecia familiar.

"Haru?" ela divisou uma silhueta negra aproximando-se pela linha da arrebentação.

Silêncio. O vulto continuava a se aproximar.

"Haru? É você?" arriscou novamente.

De repente, a cabeça do vulto virou-se em sua direção. Dois enormes olhos amarelos, refletindo as estrelas, e um conjunto de presas pálidas completamente à mostra. O tanuki rosnou em sua direção.

"Ótimo, vamos fazer tudo de novo" a raposa suspirou e foi andando calmamente ao encontro da criatura.

Haru parecia completamente desnorteado. Pateava a areia como se nunca houvesse pisado em nada parecido (o que, concluiu Cora, provavelmente era verdade), e mordia o vazio como se enfrentasse um inimigo invisível. Os ganidos que emitia pareciam mais súplicas de desespero do que propriamente uma ameaça.

A raposinha aproximou-se por trás, tomando o cuidado de pressioná-lo contra a maré: se precisasse fugir, preferia correr pela areia fofa do que perder velocidade por uma pelagem molhada.

Dons de Inari - Parte IWhere stories live. Discover now