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Cora se preparava para dormir. Após o primeiro contato com o jogo das mentiras, o resto do dia fora dedicado a exercícios físicos. Seus músculos estavam rígidos e doloridos, as articulações mal capazes de obedecer aos movimentos.

Depois de um demorado banho quente, jogou-se de cara na cama, fazendo com que uma cascata de cabelos rubros cobrisse os travesseiros. Permitiu-se alguns segundos de imobilidade antes de sentar, apoiada na parede, para observar a janela.

Através da cortina, os jardins pareciam tranquilos e desertos. A luminosidade que escapava pelas vidraças podia ser vista refletida no chão de cascalho. Mas até então, nenhum movimento. E absolutamente nenhum sinal de Edith.

Depois do jantar, Edith saíra furtivamente para explorar melhor a mansão. Argumentava ser um absurdo que as garotas conhecessem tão pouco da casa mesmo morando na propriedade há quase um mês. Cora estava tão esgotada que não fez o mínimo esforço para dissuadí-la ou mesmo para acompanhá-la. Apenas concordou com a cabeça e lhe desejou um breve até logo antes de se arrastar escada acima. Agora no entanto, mais de uma hora depois, começara a se arrepender de não ter obtido mais informações.

"Espero que não esteja farejando além da conta..."

Decidiu esperar pela colega. Esperar sentada, claro, ou o sono a dominaria com facilidade. Sentia o esforço de suas pálpebras mantendo-se abertas e por mais de uma vez flagrou a mente flutuando para algum lugar distante.

Quinze minutos, vinte minutos. Nada. Sem perceber, cruzou as pernas na mesma posição em que costumava meditar na sala das almofadas. Meia hora e nada de Edith. Estava cada vez mais difícil manter a consciência. O corpo inteiro suplicava para que a mente se entregasse.

A lembrança vagou até o Brasil, até cenas de sua infância, acompanhou os olhos chorosos da mãe quando embarcou no vôo que a levaria para o Reino Unido e o sorriso caloroso de Miss Maddie quando as duas se conheceram. Lembrou do estranho dia em que Haru surgira no pub e da sensação de estar sendo observada de perto. Lembrou também de como ele garantira que tudo iria dar certo para ela, que não estaria sozinha. E de certa forma, ele tinha razão. Havia feito uma boa amiga. Uma amiga que pelo visto não ia chegar nunca.

Só precisou de mais alguns instantes para que acontecesse. O vazio inicial de seu cérebro foi inundado aos poucos por uma paisagem. Um campo enorme, coberto pelo branco estéril de neve recém caída. A raposinha vermelha encontrava-se bem no centro do descampado, olhando em todas as direções enquanto os flocos de neve cobriam-lhe as orelhas.

Como boa representante de sua espécie, a exposição excessiva era sua maior preocupação no momento. Ela era apenas um pontinho colorido no meio da vastidão branca. Precisava descobrir onde estava e precisava mais ainda de um abrigo. Começou a andar à esmo, focinho rente ao chão, na esperança de encontrar algo ou alguém que não fosse feito de neve. As patas afundavam ligeiramente na substância fofa, atrasando sua caminhada, mas o pelo espesso parecia fazer um ótimo trabalho como isolante térmico.

Em algum ponto à sua esquerda viu uma construção de madeira escura, parecida com um celeiro. Mais adiante, uma casa tão coberta de branco que só podia ser identificada como uma casa graças à chaminé comprida que despontava no telhado, já envergado pelo peso da neve.

Avançou agachada até a lateral do celeiro, entrando por uma fresta aberta entre duas tábuas. O local cheirava a palha e estrume, mas pelo menos era quente. Seus olhos aguçados de raposa logo se acostumaram à penumbra. Cora não identificou nenhum animal lá dentro, haviam apenas alguns currais vazios, correias e ferramentas penduradas nas paredes. Uma pá e um balde estavam encostados num canto, junto à algumas caixas.

Dons de Inari - Parte IWhere stories live. Discover now