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O olhar de Mahira era tão intenso que deixava as pequenas raposas desconfortáveis. Edith estava quase agachada, as patas dianteiras grudadas no peito. Cora se aproximou da colega e encostou sua orelha na dela, num gesto que, pelo menos em sua cabeça, pareceria reconfortante.

"Quatro raposas vermelhas, uma raposa-do-deserto e uma raposa melanística" prosseguiu a tutora. "Agora que estamos na verdadeira forma de nossos espíritos, vocês podem ter suas perguntas respondidas."

"Como escolhemos nossa forma? Eu simplesmente apaguei lá na sala e já acordei desse jeito." Leonora foi a primeira a se manifestar, tão logo foi lhe dada a chance.

"A verdadeira forma do espírito não é uma escolha consciente. É um arquétipo de auto-conhecimento. É como você se enxerga, transcrita para os moldes de uma raposa. A mais pura essência de seu ser. Uma vez escolhida sua forma quando Yako, esta lhe acompanhará para o resto da vida."

"O que é Yako?" perguntou Franchesca. Era engraçado como ela e Eloise estavam ainda mais idênticas como raposas.

"Designa as kitsunes recém-iniciadas ou de poucas caudas. As Yakos podem ter até três. Depois disso, se tornam Yorikatas, assistentes como Sofia. E finalmente, com sete, oito ou nove caudas são chamadas Shuryos, o conselho do clã. Decisões passam por todas as classes, mas são as Shuryos que detém a palavra final em nossas questões" explicou Mahira com um brilho orgulhoso por trás dos olhos escuros.

"Imagino que vocês utilizem essa espécie de transe para se reunir, já que as raposas estão espalhadas pelo mundo todo" disse Amelia, seu tom intelectual soando quase pedante.

"Exatamente. Não só por uma questão logística, mas também cultural. Aqui somos irmãs, aqui não podemos nos agredir já que não estamos presentes fisicamente. Enquanto lá fora, é cada uma por si. Um Kotai, como chamamos um regimento de raposas, não é uma alcatéia. Fora da forma de raposa, não temos obrigações uma com a outra."

Mahira fez uma pequena pausa, passando a língua maliciosamente pelos caninos brancos e pontudos, antes de acrescentar:

"Além disso, é impossível esconder coisas numa reunião de Kotai. Tudo o que você disser será escutado mentalmente por todas as integrantes, desde que elas estejam perto o suficiente entre si. Quando estamos em círculo, ou se fala algo sem restrições ou é melhor que não se fale nada."

Cora apreciou intimamente a informação. Significava que conversas paralelas e conspirações não poderiam ser realizadas em um Kotai. Ou então, visando uma dimensão mais fútil, que as outras meninas não estariam trocando opiniões nesse exato momento sobre a aparência de Edith. Não saberia dizer se era apenas por serem colegas de quarto ou se seus espíritos haviam simpatizado um com o outro, mas Cora sentia-se solidária com a raposinha amarela.

Devia estar com o olhar realmente distante em suas divagações, porque Sofia, até então imóvel, dirigiu-se a ela:

"Alguma pergunta, Cora? Posso sentir seu cérebro funcionando."

A menina ruiva sobressaltou-se com a repentina atenção dirigida à sua figura. Existiam tantas perguntas que gostaria de fazer que escolher apenas uma fez com que um enorme branco surgisse em sua mente. Tentou trabalhar rápido nas lembranças que tinha adquirido desde que chegara à mansão, e uma imagem formou-se em sua memória. Teria de servir.

"Eu...Porque existem seguranças armados no jardim?" 

As narinas de Sofia se dilataram, e ela lançou um olhar assustado para Mahira. A raposa cinzenta, no entanto, parecia pouco abalada.

"É preciso entender o cenário histórico onde as kitsunes viveram para responder sua pergunta, Cora. Kitsunes são pessoas com muita probabilidade de alcançar o sucesso, não nos envergonhamos de utilizar nossos dons em benefício próprio. E, especialmente alguns séculos atrás, mulheres bem sucedidas nunca eram vistas com bons olhos. É claro que ganhamos inimigos ao longo do tempo... Nós os chamamos de Caçadores."

Dons de Inari - Parte IWhere stories live. Discover now