Casa de ossos - Capítulo 2

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Morta.


É assim que estou, afinal.


É assim que me sinto.


Agora estou no carro de uma assistente social, de cabelos encaracolados, que batiam nas orelhas, a pele branca. A camisa azul que estampava um: SORRIA, EU IREI TE AJUDAR! ─ E uma calça jeans justa, que batia em seu tornozelo.


O carro cheirava a plástico e meu estômago parecia revirar por isso. O banco era escorregadio, de modo que em toda a curva, eu escorregava para o lado.


Suspirei e olhei pela janela. Eu já perdera as contas de quantas vezes chorei em horas aleatórias dos dias. Eram dois dias que eu estava órfã. Foram dois dias que eu passei chorando, literalmente. Chegava a ser cruelmente irônico: o ditado diz "pior não pode ficar"; mas me pareceu que tudo ficou pior do que eu um dia pensei que ficaria. Há dois dias e eu me encontrava presa em uma frustrante liberdade. Agora estava liberta em uma estranha prisão.


As ruas passavam, virando um borrão e deixando-me mais tonta ainda. A assistente parecia me levar para um lugar distante, porque nunca estive naquela parte da cidade. Eu procurava não pensar nas imagens dos meus pais, jogados no chão, com aquele pano em cima, mas sempre voltava à memória. Não importa exatamente em que parte do dia, eu sempre seria assombrada por isso.


─ Amor, desculpe a indelicadeza, meu nome é Marta. ─ Ela disse depois de um tempo que fiquei observando as ruas e as casas passarem em borrões. ─ Olhei-a aérea.


─ Sim, eu também gosto de batata. ─ Respondi, virando para a janela de novo, apoiando minha cabeça na mão. Não percebi sua cara de intrigada. Tudo que consegui pensar era como minha vida tinha se desmontado tão de repente.


─ Sim, Claro que sim, claro. Docinho, entendo que esteja um pouco traumatizada agora que perdeu seus pais faz dois dias não é mesmo?

─ É.

─ Então... Queria saber o que você sente com tudo isso. Como é isso para você? ─ Ela perguntou. Suspirei. Sei que agora que iria para adoção, mandariam o monte de pessoas me avaliarem: assistentes sociais, psicólogos e tudo que eu não precisava.

─ Eu me sinto morta ─ respondi, seca.

─Sim, é certo que sinta isso mesmo, mas e o fato de ser encaminhada para a adoção? ─ Insiste, tentando me fazer falar alguma coisa.

─ Estranho e vazio.

─ Tem algo que queira falar? ─ Inquiriu-me, encarando pelo retrovisor.

─ Não.

─ Não quer desabafar?

─ Não.

─ Às vezes faz bem...

─ Às vezes não é agora.

─ Tudo bem, então. ─ Ela desviou o olhar e continuou a se concentrar no trânsito. Eu era uma órfã, que acabou de sair de São Paulo, indo para um orfanato.

Lembrei-me dos policias tentando encontrar pertence meu pelas cinzas. Nada ficou inteiro. Minhas roupas destruídas, tudo em cinzas.

E ainda por cima... Como aquele incêndio começou afinal? Ninguém dissera nada relacionado e eu queria saber. Não tínhamos inimigos, pelo menos a meu ver. Era impossível um incêndio de tal proporção ter começado do nada.

E se... Isso não tivesse sido um acidente? Se isso tivesse sido um assassinato? Era muito precipitado tal conclusão, mas eu não me espantaria se algo desse tipo acontecesse. Muito mais com meu pai, dono de altas dívidas e metido em encrencas.

Voltei-me para a assistente, insistente:

─ E se meus pais não foram vítimas de um acidente? E sim de um assassinato? O que você acha? - Marta não respondeu de início.

─ Mas que mer.. Flor, existe essa possibilidade também, oras... Mas acho improvável que eles vão investigar isso. Estão certos que foi um acidente e por que não seria, afinal, pelo que eu soube seus pais não tinham inimigos.

─ Minha mãe não, mas meu pai sim ─ rebati.

─ Eu não acredito que tenha sido um assassinato, Samantha - suspirou. Não disse mais nada. O que diria? É impossível uma profissional dizer que desprezariam o caso de meus pais porque há casos mais importantes.

Recostei-me no banco, atada mentalmente. Não voltei a olhar pela janela, dispersando-me no cenário horrível que se desenhava lá fora para mim.

Foram questões de segundo para que ela parasse em um tranco, voltando os olhos para mim.

─ Desça. Nós chegamos.

Olhei pela janela, vendo uma casa verde, sustentando alegres vasos com plantas artificiais coloridas postas embaixo das duas janelas, uma de cada lado da porta marrom. Com leve careta peguei minha bolsa escolar, que afinal, era tudo o que eu tinha.

Abri a porta, e sai do carro. A rua era de paralelepípedo e estava molhada, provavelmente pela chuva. Fechei a porta atrás de mim, observando a assistente fazer o mesmo. Permaneci parada, olhando para frente, atônita. Marta se aproximou, dando-me tapinhas nas costas.

─ Vamos, não é tão ruim assim ─ sorriu, puxando minha mão. Segui-a. Atravessei a rua, cheguei à calçada, onde a casa tinha uma convidativa varanda e uns três degraus de escada.

Olhei para o céu e depois para a porta de entrada. A noite caia suavemente sobre a pequena rua com poucas casas. O vento frio da tarde inundou meu casaco. Tomei coragem, levando a mão à maçaneta. Pulei para trás quando uma senhora de meia idade, enorme e gorda, com a cabeça redonda e com um nariz arrebitado disse-me:

─ Oi, flor! Chegou tão cedo! ─ disse, agitando os braços, fazendo seu grande vestido verde escuro esvoaçar.

Olhou para a assistente, sorrindo ao proferir:

─ Veio rápido! Que ótimo, pois já separei o aposento dessa gracinha. ─ Apertou minhas bochechas.

A assistente deu um sorriso forçado e afastou-se, indo em direção ao carro, enquanto a reitora redonda me olhava com alegria tão artificial quanto às flores das janelas.

─ Entre, entre, fofura! Mostrarei seus aposentos. ─ Eu entortei a cara quando ela me agarrou pelo braço, puxando-me para dentro.

O que eu vi foi o monte de crianças e adolescentes amontoados em uma sala, provavelmente na sala de estar. A mulher empurrou-me com a barriga, fazendo-me praticamente pular para o meio da sala pequena e apertada. Engoli em seco quando todas as crianças e adolescentes pararam para me olhar. Envergonhada, abaixei os olhos e a cabeça, juntando as mãos umas nas outras. Era automático, quando constrangida, fazer isso.

─ Digam olá para a... ─ A senhora berrou no meio da sala, em exagerada voz alegre.

─ Samantha Oliveira... ─ Apressei em dizer, mesmo que baixo.

─ Digam: "Olá" para Samantha! ─ berrou tão alto que pensei que o lustre fosse estourar. As crianças pularam e gritaram, dizendo olá, como se estivessem em um quartel general onde foram treinadas. Os adolescentes fizeram cara de pouco caso. Uns viraram a cara, outros olharam curiosos, e outros até disseram um pequeno "oi", sem qualquer entusiasmo.

A mulher virou-me para ela, quase quebrando meus ombros, e prosseguiu:

─ Samantha, seja bem-vinda. Meu nome é Claridina ─ sorriu, esperando minha reação.

Tudo que eu pensei foi: "Claridina?"


Diante de meu silêncio, continuou:

─ As criancinhas chamam-me Clarinha e os maiores de Clara ─ Desviou os olhos em um sorriso nervosamente exagerado.

─ Okay, acho que Clara está ótimo. ─ Pontuei, claramente esperando que ela parasse de falar. Erguendo os ombros, sentindo-me puxar para um corredor onde havia várias portas. Clara lançou-me no fim dele, arreganhando a porta do último aposento, revelando um quarto. Empurrou-me para dentro e ansiosa completou:

─ Então, espero que goste, fique à vontade, o jantar é servido às sete. ─ Ela fechou a porta, mas não passou a chave (Se tivesse passado, eu juro que gritaria).

Suspirei olhando para o pequeno quarto que continha duas camas. Franzi a testa. Eu o dividiria com alguém provavelmente. Uma das camas sustentava coberta e lençóis mal arrumados. As paredes eram de um bege descascado. Dos lados, percebia-se mofo. As camas eram simples, os lençóis escuros, como se estivessem com bolor ou sujos. Cobertas lilás, o que causava uma diferença grande de cores no quarto.

Soltei o ar e levei minha bolsa para a cama que estava arrumada. Olhei em volta mais uma vez. Vi duas cômodas pequenas. Foi quando levantei-me para guardar as poucas coisas que tinha, que a porta se abriu e uma sombra feminina adentrou o quarto.














































Tem alguém aí? - Volume 1 Donde viven las historias. Descúbrelo ahora