O que passou, não voltará mais

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Agatha fez um sinal para continuar em silêncio. Tudo que eu conseguia ouvir, era a chuva lá fora.
Passado alguns segundos, ela olha de novo para mim. Suspira. Pela primeira vez na vida, vi uma expressão de tristeza em seu rosto, e não de deboche.
Agatha levanta. Fico a olhando ainda por um tempo. Só o que consigo ver, é sua silhueta passar de um lado para o outro, nervosamente.
- Tá, ela era sua irmã. Mas o que aconteceu? - Perguntei, levantando sem pensar que eu estava sendo indelicada. Ela parou, e se apoiou na parede.
- Aconteceu... Muitas coisas aqui nessa casa. - Agatha balbuciou.
- Coisas... Que envolve morte? - Sussurei, cautelosamente. Ela se voltou para mim.
- Sim. Envolve. Minha familia. - Ela disse. Engoli em seco. Eu não queria que ela se sentisse... Pressionada para contar.
Contraí os lábios, olhando para a janela. Por um momento, só se ouvia os pingos de chuva. E o vento batendo no telhado. Mas nada.
Ouvi sua respiração titubear. Ela se virou para mim, e sussurrou, com a voz vacilante:
- Minha família era... Bem, não era uma família normal. Não do tipo que se juntava em um almoço feliz aos domingos. Que compartilhavam novidades. Que faziam uma ceia de natal. Meus pais não ligavam para mim. Eu e mais três irmãos. Um era adotivo. Minha mãe que quis adotar ele. Eu era a única que não gostava de arranjar mais brigas. Mas fazia isso me isolando no meu quarto. Apenas observando. Meu irmão adotivo, se chamava Lee. Minha irmã mais velha, era Mary. A mais nova, se chamava Emily. Tudo começou quando Lee foi adotado. Meus pais passaram a brigar mais, por minha mãe ter feito aquilo. E ele agredia ela... Por várias vezes a cortava. No pescoço. Lee ajudava. Ele podia ser uma criança de dez anos, mas gostava de violência. Nessa época eu tinha apenas oito anos... - Ela fez uma pausa, levantando a cabeça. Parecia realmente pertubada. Parecia pela primeira vez, uma pessoa triste.
- Minha mãe morreu por isso. Eu com nove anos. Meu pai tinha consciência do que fez. Mas não se sentia culpado... - Ela rosnou, e bateu o pé no chão - ELE NÃO SE SENTÍA CULPADO! - Vi o reflexo de uma lágrima cair de seus olhos.
- ficamos sozinhos. Apenas com meu pai. Que começou a descontar sua raiva em nós. E descontava em Lee. Já que o odiava. Eu e Mary, éramos as únicas que não queríamos confusão. Enquanto meu pai agredia meu meio irmão, meu meio irmão agredia Emily. Lee era revoltado com a vida, por ser adotado. E pior, viver entre nós. - Agatha fechou os olhos, respirando profundamente.
- Minha irmã, Emily, tinha uma caixinha de música. Sempre dormia com ela. Uma fada sorridente bailava em sua base. A musiquinha era... Assustadora. Poderia parecer que não, mas era. Emily nunca percebeu isso. Grudava com a caixinha de música, e um bicho de pelúcia, que ganhou de minha mãe, logo que nasceu. O bicho de pelúcia era um urso branco. Com um lacinho roxo enrolado no pescoço. Em uma época que eu ainda era... Normal, eu entrei no meu quarto, e vi Emily, brincando com o urso. Ela se virou para mim, e... Sorriu. Dizendo que o urso talvez tenha vindo com o lacinho sobre o pescoço, para ser enforcado. Então ela pendurou um pedaço do laço, em uma parte da minha cama. E riu. Ela... Riu. - Agatha parecia tentar controlar a voz. Mesmo não conseguindo muito. Eu nunca pensei que poderia ver ela daquele jeito.
- Eu... Não sei o que dizer... - Balbuciei, pouco a vontade. Ela foi esconrregando pela parede, até sentar no chão. Ficou em silêncio por um tempo, e depois abaixou a cabeça. Eu podia ver, que seu corpo balançava com os soluços que dava.
- Depois de algum tempo, meu pai se matou. N-na verdade, ele pediu ajuda para isso. Para um amigo... Até hoje eu me pergunto que amigo era esse, que ajudava as pessoas a se matar. Eu só sei que as câmeras que antigamente existia aqui, flagraram o amigo do meu pai prendendo ele. Depois o jogou no chão. E... Ligou o aparador de grama, empurrando ele em direção à meu pai. - Agatha soltava as palavras, com um soluço entre cada palavra. Suspirei. Cada vez mais, eu tinha repugnância daquele lugar.
- O resto você deve ter adivinhado. O cortador de grama, ao alcançar meu pai, o mutilou. E nós assistimos isso pela câmera, sem poder fazer nada. Tudo já tinha sido feito. O amigo do meu pai fugiu. Só deixando eu e meus irmãos. Lee, era um maníaco, com certeza. Junto com Emily. Era impressionante. Ela era minha irmã mais nova... Parecia tão inocente, mas... Só falava em morte. Em violência. Sem querer, ela viu as gravações da câmera, e assistiu a morte de meu pai também. Ela junto com Lee, eram dois assassinos. - Agatha terminou a última frase, abaixando a voz. Engoli em seco. Do que esperar da história de uma pessoa tão amarga quanto Agatha?
- Lee e Emily mataram uma criança de nove anos. Nessa época, Emily tinha cinco, e Lee doze. Eles mataram, mas de uma forma tão... Assustadora... Que é impossível pensar que foram criança que fizeram aquilo. Eles trancaram essa criança em um quartinho. Que dependia de ventilação. Mas Emily trancou a ventilação, deixando essa pessoa sem ar. Durante isso acontecia, Lee produzia barulhos de horror para ela. De pessoas arranhando paredes. Gritando. Sendo torturadas. Barulho de correntes. A criança deve ter ficado tão assustada... Imagine você, presa em um lugar, faltando ar, e ainda por cima, tendo que ouvir isso. No final, Lee disse que apenas queria fazer uma brincadeira. Fazer a criancinha pensar que estava em um filme de terror. Que queria apenas brincar. Mas eles fizeram isso por maldade. Estava na cara. A criança morreu sem ar, e após Emily tacar fogo no quarto.
- Mas ela tinha só cinco anos! - Exclamei. Agatha ergueu a cabeça para mim.
- Sim, apenas uma criança! Mas meu irmão a ensinou a ser má. A fazer coisas más. Depois disso, os pais da menininha, horrorizados, nos denunciaram. Mary levou a culpa, pois era a mais velha de nós. Eu não queria que ela fosse embora. Era a única que cuidava de mim. Que parecia gostar de mim. Que ficava do meu lado, quando ninguém mais ficava - Ela fungou, enxugando uma lágrima com a manga da blusa - Mas ela foi para o internato. Lee a acusou de o ensinar a matar as pessoas. E, apesar de tudo, Mary era de menor. Tinha quatorze anos na época. Eu nove. Quando ela foi levada embora, as pessoas queriam nos tirar daqui. Mas eu não queria sair. Eles iriam nos separar. Mesmo que eu não gostasse das coisas que Emily fazia, ela era minha irmã. Eu ainda a amava. E eu queria cuidar dela. Apenas não gostaria que Lee estivesse perto. Depois que levaram Mary, ficamos sozinhos. Ou melhor, eu fiquei sozinha. Lee agora era o mais velho. Roubava comida para nós três, mas mesmo assim, não ligava para mim. Apenas ligava para Emily. E ela só ligava para ele. Maltratavam todo mundo. Lee contava histórias de horror para ela dormir. A caixinha e seu ursinho, foram rabiscados com lápis vermelho, que ela dizia ser sangue. Emily não pensava em nada a não ser morte. Cadáver. Violência. Ela dizia ser feliz com isso. E eu passei a me distanciar cada vez mais. Foi quando eu tinha quinze anos, Lee dezoito, e Emily onze, que tudo acabou. Mas dessa vez para sempre. A alguns anos atrás, recebemos a ligação do internato de Mary, dizendo que ela havia morrido. Eu me revoltei. Comecei a brigar com Lee diariamente, dizendo que tinha que ser ele. ELE QUEM DEVIA ESTAR MORTO. - Agatha gritou, com a voz vacilante, carregada de ódio. Recuei alguns passos, trêmula com a história dela.
- Em um dia, Lee perdeu a paciência comigo. Ele me perseguiu com um machado, por essa casa mesmo. Eu corria dele. Mesmo não querendo. Aqui, é um casarão. Mesmo que não pareça. Subi para o andar de cima. Eu ia me esconder no meu quarto. Pensava que ele não seria capaz de tentar nada comigo. Mas ele agora, era um psicopata feito. Era capaz de tudo... Quando eu cheguei no meu quarto, percebi que Emily brincava com seu urso de pelúcia. A caixinha de música tocava. Mesmo que o rosto da pequena fada estivesse pintado de vermelho. Eu lembro bem, que entrei correndo, assustada, esquecendo de fechar a porta. Quando Lee apareceu na entrada, os olhos de Emily brilharam de felicidade. Ela era muito agarrada a ele, e sempre ficava assim quando o via. O considerava como um irmão verdadeiro. - Agatha fez uma pausa. Parecia mais calma agora. Mas ainda soluçava.
- Bem, quando Lee me viu, ele tacou o machado, sem se preocupar com Emily. - Ela disse, acendendo a vela novamente, de modo que eu pudesse ver seu rosto.
- Mas no momento que ele tacou o machado, Emily se levantou, alegre, com os bracinhos abertos, exclamando o nome dele. O machado errou a pontaria. Pegou na cabeça de Emily, que caiu no chão, já sem vida. Lee pareceu se ligar que ela estava lá, e que tinha acertado a pessoa errada. Quando ele percebeu, fez cara de assustado, e correu para ela. Eu nem tinha ações. Simplesmente ver minha irmã mais nova, morta, ali no chão, me deixava sem ação. Eu passei a odiar ele mais ainda. Pensava que ele iria pegar o machado de novo, e me matar ali. Mas ele não fez. Apenas mecheu nos cabelos, transtornado, e saiu. Me deixando sozinha, com o que antes era minha irmã, o ursinho de pelúcia jogado no chão, e a caixinha ainda tocando a música. - Agatha disse, olhando vidrada, para a chama da vela. Eu não sabia o que dizer. Perto da história dela, minha vida parecia conto de fadas. Ouvi ela suspirar.
- Depois daquilo, Lee se matou. Em uma tarde, subiu para o meu quarto, e entrou na varanda. Subiu no parapeito, e se jogou de lá de cima. E assim, eu me tornei minha única familia. Para sempre, dessa vez. Como eu disse, não pude fazer nada. O que passou não voltará mais. Nunca mais.


Tem alguém aí? - Volume 1 Où les histoires vivent. Découvrez maintenant