A TURBULÊNCIA ESTÁ AQUI

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Bairro da Sagrada Família, janeiro de 1992

O Dia de Reis na Catalunha era celebrado com a magnitude de Natal dos Estados Unidos. As crianças catalanas recebiam os presentes que tinham pedido na cartinha aos reis magos. Carta entregue aos carteiros reais durante a cabalgata (noite do desfile em que os reis passavam pelas ruas distribuindo doces). Em casa, perto do presépio deixavam torrons para os reis e água para os camelos. No dia seguinte encontrariam os presentes.

Nesta noite do ano, a via Laietana se inundava de gente para assistir ao desfile. Era costume as pessoas, principalmente as crianças, levarem coroas na cabeça durante o desfile. Gerard era uma criança de nove anos de idade, obediente e bastante tímido, que passava horas montando e desmontando brinquedos no quarto. Emocionado com a ideia de ir com o pai de mãos dadas pelas ruas iluminadas de Barcelona como seus coleguinhas, o pequeno decidiu pegar o dinheiro de seu cofrinho, ir até à papelaria comprar o que necessitava e passou dias preparando sua própria coroa. Quando o dia tão esperado chegou, o pequeno Gerard sentado no sofá, com a barriga em cólicas, orgulhoso ostentava na cabeça sua 'obra de arte'. A mãe, a irmã, a avó e um casal de vizinhos com dois filhos mais ou menos da mesma idade de Gerard, estavam reunidos na sala à espera de Jaume.

Ao aparecer na sala, antes de cumprimentar aos demais, Jaume lançou um olhar diminutivo ao filho e disparou:

Aonde você pensa que vai com essa estupidez e chamando a atenção? Colocou as mãos gordas sobre a cintura proeminente. Tira isso agora ou você vai ficar!

O menino sentiu os olhares críticos se voltarem para ele. Humilhado, escutou os risinhos perversos das crianças. Montse se apressou em dizer algo para diminuir o constrangimento geral:

Jaume! Deixa de implicar com o menino. Todos levam coroas! A que ele fez está muito bonita!
—Que tradição ridícula! retrucou Jaume.

As lágrimas embaçaram os olhos de Gerard. As segurou. Ele não podia chorar, as crianças ririam ainda mais, sua mãe ficaria triste e seu pai não o deixaria levar a carta aos reis magos. Enquanto os pais discutiam como se fosse invisível, engoliu a bola que se formou na garganta, marchou até o quarto, abriu a janela e lançou a coroa. "— Tradição ridícula", repetiu, contemplando sua coroa flutuar solitária na noite fria.


Bairro da Sagrada Família, janeiro de 2022



Ao chegar em casa, as duas bicicletas em frente à porta, e os dois quadros com as caricaturas dele e de Alina o receberam. O apartamento imaculadamente limpo e o cheiro de ensopado recém preparado diziam "Bem-vindo ao seu lugar seguro". Era o que ele deveria ter sentido. Mas não. Tinha a maldita bola entalada na garganta.

Acabara de deixar Alina no aeroporto. Poderia ter uma semana com Olívia. Subitamente seu membro endureceu e o coração acelerou. Perto dela, toda a razão evaporava. Era puro instinto, tudo novo e assustador. Por que não conseguia ficar tranquilo em seu "relacionamento de manual" com Alina? A alemã não lhe trazia nenhum problema. E o mais importante: seus pais estavam encantados com Alina. Era a nora perfeita: loira, rica, bem-educada e discreta. Ele e seu pai, nunca tinham vivido um momento tão bom.

Por que ele tinha essa necessidade das "sacudidas" que Olívia dava? Ele não entendia, mas seja o que fosse a culpa era dela. Gerard terminou o banho, buscou um chinelo, não encontrou. Enquanto descia, alguma coisa o espetara o pé. "Droga!" uma lasca de madeira soltou do degrau e entrou no seu pé. Se sentou no primeiro degrau e tentou tirar, sem sucesso. Mancando foi procurar um alicate de unha e uma pinça no kit médico em baixo da pia do banheiro. "Que droga, tão pequeno e insignificante, mas tão incômodo!" Fez um corte minúsculo na pele, e tirou a lasca de madeira. Um mini jato de sangue ultrapassou a fissura do corte, e respingou pelo tapete felpudo branco. Repugnava sujeira. Com uma mão contraiu o dedo para evitar que o sangramento aumentasse, e com a outra buscou gaze e band aid.

A RESPOSTA DE ALINA ( CONCLUÍDO)Onde histórias criam vida. Descubra agora