Capítulo 21

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Edrian.

Dor. Era o que eu sentia constantemente, a cada respiração. Meus ossos pareciam não aguentar a gravidade, enquanto meus pulmões não suportavam aquele ar. A todo momento, sobreviver era um desafio. Ficar vivo estava sendo pior do que a morte. Não havia sentido em continuar, pois a tristeza morava em meu peito, no lugar do meu coração. Eu sentia um vazio inexplicável, mas do tamanho de Sana. Minha Sanay. 

Me levantei da cama, sem conseguir dormir, como nos demais dias. Minha janela estava fechada, como sempre a deixava, mas naquele dia, tive a curiosidade de olhar para fora. Caminhei lentamente, sentindo o chão se aquecer debaixo de meus pés, como fogo. Assim que abri as cortinas que tampavam minha visão e as janelas trancadas, pude ser agraciado com o frio da madrugada em meu rosto. 

O cheiro dela. Pensei, respirando o aroma de Sana, que se encontrava do outro lado do corredor. Provavelmente ela também estava acordada e a julgar pelo cheiro, tinha tomado banho. Pensar que a minha preciosa estrela não se lembrava de mim, era pior do que qualquer dor que senti em todos aqueles anos. Ninguém poderia torturar-me como a ausência de seu amor, de sua atenção, mesmo estando tão próxima. Meu corpo queimava quando estávamos perto, louco para sentir seu toque, mas em sua visão eu era um completo estranho. Não podia culpar os humanos por não entenderem nossa magia, mas...por um momento, desejei que ela fosse uma fada. Assim, estaria tão aprisionada a mim como eu estava a ela. 

Pare com isso. Me repreendi mentalmente, não acreditando que podia desejar uma coisa daquelas. Não queria que minha Sanay passasse por aquilo, muito menos que mudasse quem ela era. Eu a amava de qualquer jeito. 

Por alguns instantes, senti um puxão em minhas costas, sabendo que aquilo deveria ser a ausência de minha asas. A primeira coisa que desapareceu de meu corpo, foram elas. Depois minhas cores morreram e não voltariam nunca mais. Uma lágrima ameaçou cair de meus olhos, mas a segurei, não suportando mais chorar. 

Os céus se ajuntaram, negros e em uma chuva silenciosa. Não, não chore. Não por minha causa. Quero que Sana veja um céu lindo e não...um tempo nublado. Saber que a floresta andava tão triste em consequência a minhas emoções era devastador. Além de ficar trancada o dia todo naquele quarto, não conseguia dar uma boa paisagem para minha amada. 

Diana por várias vezes tentou me tirar do quarto, mas até ela começava a me causar nausea. A reação corporal de uma fada que foi rejeitada, apenas tendia a piorar. Eu não aguentava por nada a presença de outras pessoas, e quanto maior a quantidade delas, pior me sentia. Era como se eu estivesse traumatizado. Apenas Sana era um alivio para minha repulsa. Ao contrário dos outros, quando ela se aproximava, o que meu corpo mais ansiava era por sua presença. 

Após horas e mais horas sentado, lendo livros entre as diferenças culturais do povo humano e do povo mágico, me levantei, com um mal pressentimento rondando meu espirito. Então, pela primeira vez naquela semana que se passou, onde não recebera mais visitas de Sana, tomei a iniciativa e abri a porta. Minha mão ardeu em contato com a maçaneta, que era constituída por prata. Mordi levemente meu lábio inferior, segurando devagar no material e girando-o para sair. 

A porta do quarto de Sana estava encostada, mas não fechada. Não quis invadir sua privacidade e apenas passei pelo corredor, seguindo caminho até as escadas. Me escorando nos largos corrimões de pedra branca, desci os longos degraus. Sentir o cansaço em minhas pernas era irritante, principalmente para alguém como eu que antigamente amava esportes. Para onde foi aquela força? Me perguntei, melancólico. 

— Edrian? — Assim que percebeu minha presença, Diana arregalou levemente os olhos claros, que brilharam como joias. Até que ela se deu conta de que eu estava sozinho para descer tantas escadas e correu para me ajudar. — Meu irmão, o que houve? Pensei que Tilda estivesse com você.

— Ela está em seu horário de almoço.

— Por que não me chamou?

— Calma, minha irmã. Posso descer as escadas sem correr riscos. 

— Mesmo assim, deve tomar mais cuidado. Imagina, eu sair da mesa de refeições para encontra-lo aqui caído. Você me mataria do coração! — Diana soltou um riso nervoso, tentando disfarçar sua preocupação em uma brincadeira. Seus braços brancos e macios, porém delicados, se enrolaram no meu, para me dar apoio. — Posso saber qual milagre o tirou de seu quarto?

— Sana não estava no quarto, hoje pela manhã.  — Citar o nome de minha amada desfez o sorriso no rosto de minha irmã.

— Oh...Sana.  — Seu tom rancoroso me tirou um sorriso, sem entender o porque minha irmã guardava tanto ressentimento da humana, sem nem conhece-la direito. É claro que talvez na mente de Diana, era culpa dela o meu estado. Mesmo que já tivesse explicado centenas de vezes o que havia acontecido na floresta. — O que ela aprontou dessa vez? Não vai me dizer que saiu beijando fadas por aí, vai?

— Mana.  — Minha voz a repreendeu, fazendo-a olhar para mim com uma expressão de fingimento. 

— O que?! Só estou preocupada com nosso reino. Nada demais. É meu dever como princesa. 

 — Eu te conheço, Diana. Não acha que antes de guardar tanta raiva, deveria tentar conhece-la? Não me apaixonei por ela do nada. Sana tem seus encantos e pode ser muito benevolente. 

—  Por você...— Ela deu um longo suspiro, enquanto terminávamos de descer a escada. —...eu faço esse sacrifício. 

— Eu agradeço.

— Mas você saiu do quarto por conta da ausência dela? — Ao mesmo tempo que parecia confusa, Diana também escondia sua curiosidade. Era um fato que um "beijo" inapropriado acontecia raramente, então a doença do laço não era muito conhecida. As fadas em geral se sentiam curiosas a respeito do que eu sentia ou pensava. Minha irmã só não tinha coragem de perguntar. 

— Não, minha irmã. Eu senti um mal pressentimento e pensei que poderia estar ligado a ela. Também tive a mesma sensação quando...— As lembranças sombrias passaram pela minha mente, levando meu animo embora. —...igual quando ela foi embora. Corri para o orfanato desesperado, pensando que poderia estar ferida. Mas ela já havia partido. — Assim que terminei de falar, as imagens me assombraram do orfanato em pedaços e os gritos de meus irmãos. Meu poder descontrolado e o som das crianças clamando por ajuda. Tremi.

— Está  tudo bem?! Você está tremulo. Quer voltar?! — Diana aumentou o aperto em meu braço, tirando a mascara que usava e revelando sua angustia.

 — Estou bem, estou bem. Não se preocupe. — Reuni forças para abrir um leve sorriso, na esperança de acalma-la. Deixar minha família incomodada estava fora de cogitação. 

— As vezes, Edrian, compartilhar seus pensamentos é melhor do que guarda-los. — Ela sabia o que estava dizendo e eu também, mas ainda não conseguia falar sobre o que fiz. Não queria pensar naquilo novamente. Levei tantos meses para esquecer, enfrentei tantos pesadelos com as vozes daquelas crianças, que não podia imaginar relembrar a tragédia que cometi.

— Estou com fome. Adoraria um almoço caprichado. — Mudei de assunto, sentindo meu estomago vazio. As vezes comer não era tão ruim. Consegui certa resistência após a ajuda de Sana. 

— Ah...claro... — Diana escondeu certa decepção com a minha resposta e mesmo que isso me magoasse, não pude dar o que ela queria. — Vamos até a mesa. Tenho certeza que devem ter aprontado um bom almoço.



...


Todos os meus irmãos e irmãs estavam sobre a mesa, comendo quietos em minha presença, e lançando olhares sutis. Havia alguns ali que já se faziam meses que eu não via. Rosetta estava tão bonita com o novo corte de cabelo, que deixou seus cabelos ondulados e em camadas diferentes. Seus olhos azuis a cada dia se pareciam mais com os da mamãe. Allan estava com os olhos arregalados desde que cheguei para comer, sem tocar no próprio prato e Mila, a pequena se concentrava em um pote fechado com vaga-lumes. Ela estava crescida, um pouco, com cabelos maiores e mais alaranjados desde a ultima vez que a vi. 

— Como está a comida, meu filho? — A rainha perguntou, olhando-me cheia de ternura e gentileza. Eu não podia esquecer que ela também passava por dificuldades. Suas cores ficavam mais fracas a cada dia. 

— Maravilhosa, mãe. Como sempre foi.   — Forcei um sorriso educado, me contentando com sua alegria. — Onde estão os cavaleiros humanos? 

— O pequeno Alef e seu tio Ramom estão cuidando de uma cepa de vespas, mandamos com toda a proteção possível. Já Forger está acompanhando alguns dos nossos investigadores, sobre os ataques das bestas de mercúrio no Sul. Luara...— Diana travou na sua fala, tirando alguns risos entre meus irmãos.

— Luara está sendo cortejada por aí...— Elleniz sussurrou, acariciando seu bichinho de estimação. 

— Elleniz!  — Diana o repreendeu. 

— É a verdade. Todos sabem disso. 

 — Ele estava tão feliz com ela! Nunca vi aquele homem se apaixonar! E olha que eu tentei, hein?! Ele sempre rejeitou nossas jovens meninas. — Rosetta parecia ter acabado de descobrir um novo mundo, expressando sua felicidade de maneira explicita. Mas percebi uma coisa, muito diferente do que minha irmã fazia. Aquilo me incomodou.

— Por que não está sorrindo?  — Minha pergunta a pegou de surpresa.

— Como assim? Eu sorri sim. Fiquei muito feliz com a noticia.

— Não sorriu como costumava fazer. 

— Ah...— Elleniz parou o carinho em seu animal de estimação e se virou para mim. —...já sei o que está dizendo, irmão. A Rosetta não gosta mais de mostrar os dentes. 

— Elleniz!

— Você mesma me disse isso.

— Por que, Rosetta?  — Minha mãe perguntou, parando de comer para dar atenção a filha.

— É que os humanos...parecem sentir certo medo dos meus dentes.  — As bochechas da menina ficaram levemente rosadas.

— Por favor, né, Rosa?! E quem se importa? Nós somos o que somos! Não podemos mudar por conta de terceiros! Eles estão no nosso reino para que a paz seja reforçada e não para que finjamos ser outra coisa. — Diana ficou indignada com a resposta de minha irmã, sem conseguir conter o tom raivoso.

— Eu queria deixa-los mais confortavel. 

— Minha querida. — Mamãe esticou o braço para pegar na mão de Rosetta. — Não tem como te conhecer e não ficar encantado. Eles se acostumarão em algum momento. 

— Agorinha devem estar lidando com um Londors. — Elleniz pegou um dos morangos sobre a mesa, o abocanhando sem perceber os olhares reprovadores de todos na mesa. 

— Quem está cuidando do Londors?  — Minha voz se sobressaiu naquele momento, conforme a preocupação tomava de conta do meu coração. — Se os demais estão com outras tarefas, quem...quem está com o Londors?! 

—  Olha, Edrian! Se acalme, por favor. — Diana segurou o meu braço, mas não consegui suportar seu toque. Me afastei com um semblante de dor, me levantando da cadeira. 

— Onde está Sana?!

— Filho, eu juro que não quis manda-la. Ela insistiu em acompanhar Rachel nessa missão. — Minha mãe também se levantou, mas não se aproximou de mim. Ela deveria saber como era a sensação de ânsia em estar próximo de outras pessoas, sem minha parceira ao meu lado. Depois da morte de meu pai, a doença do laço a havia acometido também, porém, de uma forma mais leve e vagarosa. Afinal, a floresta não havia sido rejeitada propositalmente por meu pai, ele apenas...faleceu antes da hora.

— Ela nunca viu uma dessas criaturas antes! Pode morrer!

— Não!! Forger me deixou ciente de suas habilidades. Ela é realmente exemplar. — Diana tentou se levantar, mas quase tropeçou em minha cadeira, o que a fez permanecer em seu lugar. 

— Licença, sua majestade!  — Um guarda entrou na sala, as pressas. Ele se ajoelhou rapidamente, olhando para todos os presentes. Seus olhos se arregalaram levemente ao me ver, mas o homem disfarçou.

— Sim, House? — Hollen que até então estava quieto em seu lugar, apenas observando a situação, perguntou. Ele era o responsável pelos soldados. 

— Vossa alteza, vossa majestade.  — O soldado cumprimentou. — Temos uma noticia de extrema urgencia. — E antes que ele pudesse dizer mais alguma palavra, eu estava correndo para fora do castelo, com a sensação incomoda no meu peito cada vez maior. — Uma das humanas que estava atrás do Londors...se feriu gravemente. 

Aquelas palavras, que eu ouvi antes de atravessar o salão, foram o bastante para que meus dedos formigassem, conforme meu poder se estendia por cada órgão do meu corpo. Minha Sanay estava ferida, e a culpa era minha! Como pude deixar que minha mãe mandasse ela para lutar contra um monstro tão selvagem?! Por favor, Sana, por favor, esteja bem! Aguente firme! Eu estou indo!


 

 

 


O Beijo Da FadaWhere stories live. Discover now