Prólogo

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Rio de Janeiro


Rio de Janeiro

Se você respirasse bem forte, poderia sentir o cheiro de marmelada sendo trazido pelo sopro do vento, isso acontecia sempre perto do natal. Não poderia deixar de observar as fachadas das casas decoradas com enfeites natalinos, as árvores de natal na frente das casas são muito parecidas, porém, cada uma parece ter um brilho diferente. Fico curiosa e me pergunto por que não tínhamos essa tradição?

– É uma época boa para encontrar um trabalho. – aquelas palavras da mamãe ecoavam em meu pensamento.

Naquela manhã, estranhei quando ela não ligou a máquina de costura, havia colocado uma capa sobre ela. Geralmente quando acordo ela está costurando. Pela primeira vez um beija-flor pousou em meu ombro por alguns segundos, quem sabe até um minuto, fiquei imóvel deixando-o voar assim que desejasse. Era o pássaro preferido do papai.

Alguns minutos depois, estava sentada junto ao chafariz com o livro aberto, quando a chuva despencou do céu. Levei o livro até minha cabeça, formando uma tenda.

Um garoto que passava me olhou e disse:

- Espero que não molhe o seu livro.

- O quê? – gritei de longe puxando meu casaco impaciente.

- O seu livro, vai molhar! – repetiu - Quer uma carona? - perguntou ele, levantando a aba do guarda-chuva.

Pisquei diversas vezes. Eu estava esperando minha mãe sair da padaria, estava à procura de emprego. Já tínhamos percorrido quase todos os comércios e eu sempre morro de tédio nesses dias, eis que carrego meu livro. Não virei à cabeça, continuei olhando para o nada, na verdade eu queria ignorá-lo, ele tinha sido atrevido demais.

- Não é preciso. Obrigada. – balanço a cabeça negando.

Um trovão estrondoso rachou no céu, eu me encolhi. O garoto me olhou com mais veemência, eu pude sentir. Eu o vi só de longe, mas vi sua pele morena e cabelos claros, a luz dos raios meio que me cegam por um instante. Até que voltei minha atenção à porta da padaria, meus olhos permaneceram fixos lá, à espera que minha mãe saísse e me salvasse deste incômodo que estava sentindo. Vejo um homem de cabelos grisalhos, com a sola do chinelo gasta e um chapéu encharcado cobrindo sua cabeça, ele caminha lentamente pela calçada do outro lado da rua, e por um instante, num gesto rápido, o garoto pula as poças e o segura antes dele alcançar o chão. Aquilo apertou meu coração. Até que vi minha mãe sair da padaria abrindo o guarda-chuva vermelho que era pequeno para as duas. Olhei de relance para o lado, queria verificar se ele ainda estava por lá. A expressão da minha mãe não parecia de quem tivera conseguido algo. Enquanto ela ajeitou a bolsa para o outro braço, notei que o garoto continuava a ajudar aquele homem. Minha mãe olhou por alguns segundos, parecia que diria algo,mas ignorou a cena.

Assim, como o céu de repente se abriu levando as nuvens cinzas para o outro lado da montanha, minha mãe continuou com sua cabeça erguida. Eu sabia que por dentro ela se sentia perdida, eu não era mais nenhuma criança boba, eu iria fazer 17 anos, sabia que ela queria me dar um presente no natal, embora aquilo não fizesse nenhuma diferença para mim, para ela fazia.

- Vamos querida. – disse minha mãe, com um gesto de mão me puxou para o seu lado encaixando o braço no meu. O garoto se inclinou para frente e pude ver apenas o reflexo rápido do seu rosto.

- Então. Como foi? - perguntei a ela, desvencilhando meu olhar.

- Não há nada de novo, querida. Até onde eu sei ninguém aqui parece querer dar emprego para uma mulher de quarenta anos.

Sua voz saiu tristonha, apontou para a poça, mas antes mesmo dela completar a frase eu já tinha mergulhado meu sapato amarelo de tecido surrado. Eu era campeã em fazer aquilo, eu a mirava sem querer, era o que eu dizia a ela. - foi sem querer. Olhei para minha mãe e seu silêncio era sempre o mesmo. Havia qualquer coisa em seu olhar, menos alegria.

Na noite de Natal, ao olhar pela vidraça, vi um carro estacionado perto da nossa porta, dele desce uma senhora de terno rosa. Estava longe para identificar a pessoa. Nossos olhares se encontram, como se fosse um milagre, vejo a mãe de Mia, a senhora Rute. Era como se ela e Mia fizessem parte da família. Estranhamente começamos a participar uma da vida da outra, o que tem sido muito bom, pois assim posso ir até o mar, sentar na areia e respirar a brisa suave do vento fresco que sopra meu cabelo. Ah o mar...

Tentei imaginar o que ela estaria fazendo ali. É natal e isso nunca tinha acontecido. Com ela veio um pedido generoso e muitas sacolas, tivemos que lhe ajudar a descarregar o carro, ela e Mia tiraram muitas caixas do banco de trás, por diversas razões, queria passar aquela noite e o dia, se nós permitirmos, ali conosco. Minha mãe a acolheu em um abraço, eu não sabia o motivo, mas vi lágrimas caírem dos seus olhos. Mia me trouxe um embrulho, era um vestido amarelo, o vestido amarelo mais lindo que eu já tinha visto. Só que eu não disse nada à mamãe, eu não podia. Ela tinha costurado por quase duas semanas um vestido florido para mim.

Enquanto do lado de fora a escuridão predomina, ali dentro, no interior da casa em tons brancos amarelados, as vozes atravessam as paredes e a vidraça. Colocamos uma música natalina e o cheiro de marmelada e canela das rabanadas de mamãe, pairam sobre o ar. O Natal é uma festa celebrada entre as famílias e foi isso que aconteceu, depois de tantos anos, por fim naquele Natal seríamos novamente quatro. Não podíamos ouvir as músicas e nem mesmo enxergar as luzes das ruas mais próximas, pois nossa casa ficava bem afastada, entretanto o clima daquela noite foi tão agradável que eu não senti falta desses detalhes.

Somente eu e Mia fomos para o quarto dormir cedo, após comer tanto até doer à barriga. Eu me sentia pesada e rolei de um lado para o outro na cama, Mia adormeceu rápido. Levantei devagar pretendendo ir até a cozinha beber um copo de água, mas quando ouvi a conversa da mamãe e da senhora Rute, prendi a respiração.

– Nada disso é importante para nossa história, embora eu saiba que isso significa muito para você, eu não contarei nada, nunca contarei.

Eu não sabia o que estava acontecendo, mas ouvi o choro desenfreado de mamãe.

A Vez do AmorWhere stories live. Discover now