VINTE SETE

284 35 21
                                    

Revoadas de pássaros enfeitavam o imenso céu, o cheiro de protetor que vinha do mar, fazia-me recordar do tempo que eu ainda era apenas uma jovem sonhadora. Foi naquela manhã que eu tive uma certeza que levaria para o resto da minha vida. De que o tempo e o lugar tinham grande influência sobre nossos destinos.

Em vez de alcançar os braços dele, fui atingida em cheio pelo ônibus que transportava os passageiros, devia estar uns 50 quilômetros por hora. Tinha uma bandeira pendurada lá, dizendo que era proibido ficar na pista, mas eu não tinha notado. Quando fui atrás dele eu só fui! Eu não pensei nos perigos.

Eu tive muitos ossos quebrados e meu coração quase parou de bater. Eu acho que ele deve ter parado. Eu não sei, eu não senti. Era como se eu não tivesse lá. E eu não estava! Meu corpo estava. Mas minha alma deve ter vagado por alguns dias. Até um coração novo chegar para me salvar.

Foi um verdadeiro pesadelo. Era para ser uma manhã comum. Era para encontrá-lo e dizer que ele não podia entrar naquele avião. Apenas isso. Antes que eu pudesse entender o que estava acontecendo, o impacto me lançou para bem longe dali. Eu me lembro de ter sido arremessada, só isso. Aquilo devia ter me matado, mas por incrível que pareça eu sobrevivi. Não me lembro de quase nada. Depois do impacto não lembro nada.

Eu acordei já havia se passado quase duas semanas. Então, usando uma faixa ao redor da cintura descobri que recebi um novo coração. O transplante veio a tempo de me manter viva. Minha visão ainda está meio embaçada. O médico diz que é por que eu dormi por muito tempo. É para voltar ao normal. Um processo lento mais que com certeza voltará.

Ao longo das horas seguintes, logo que acordei, comecei a imaginar o que teria acontecido com o meu bebê. Acariciei minha barriga e não sentia nada. Pedro só me olhava, nada saia da sua boca. Até que dois homens providos de sabedoria disseram que me bebê... Foi levado embora. Foi levado pelo impacto. Tinha sido impossível salvá-lo. Não tinha mais nada. Não tinha batimento, não tinha nenhum sinal vital. Dois assistentes sociais me acalmavam com palavras bonitas. Aquelas usadas para deixar tudo mais fácil. Só que não existiam nem palavras nem gestos que causassem este efeito. Quando olhei Pedro havia desaparecido. Ele devia estar ali o tempo todo. Por que eu tivera a sensação de estar sendo observada. Dia e noite, com o canto dos olhos, meio sonolenta, eu sentia que via um vulto, mas eu nunca conseguia abri-los totalmente. Então eu não sei dizer. O médico acha que foi um tipo de delírio que tive, pois eu dormi o tempo todo. Também falou que dali a dois dias me daria alta, mas que eu precisaria de uma serie de cuidados, pois meu corpo ainda não estava curado. Quatro dias depois ele prescreveu pílulas que eu deveria tomar a cada 4 horas. Eram muitas pílulas. Fiquei arrasada quando ele disse que seria um longo processo até meu corpo aceitar o transplante, ainda poderia ter rejeição. Isso me pegou de surpresa. Eu queria ter minha vida de volta. Queria poder caminhar pela orla da praia, descalço, sentir a areia sobre meus pés. Mas isso poderia me causar uma infecção e com isso viriam as complicações.

Toda aquela informação me perturbava mais do que eu deixava transparecer. E fora tudo isso, eu ainda teria que ser acompanhada por um psicólogo e fazer exames mensais. Eu sabia que o caminho pela frente era complicado e seria bem demorado. Mas pensar que eu ganhei uma nova chance de abrir os olhos de novo me encheu de força. Minha mãe e Sofia estavam lá para me levar para casa.

Os dias em casa começaram difíceis, todos precisavam se adaptar a esta nova fase. Eu queria ficar bem, sentar sozinha, caminhar pela casa sem ajuda de ninguém. Entretanto, eu não conseguia. Ainda era cedo. E volta e meia as lágrimas surgiam. Minha barriga agora era vazia e meu coração novo. Já tinha feito a consulta e estava tudo bem. Os remédios têm me causado certas náuseas, mas era mais uma adaptação que levaria tempo. Eu já até conseguia guardar as travessas de comida na geladeira, sem fazer muito esforço. Alguns dias, Pedro chegava do trabalho cansado e Sofia vinha da escola com a expressão abatida. E eu nunca tinha muitas novidades para eles. Pedro havia vendido a casa do seu pai e lhe comprado um apartamento. Seu pai não tinha aceitado o acordo, até que por fim entendera ser melhor, já que eles quase não tinham mais dinheiro. O valor gasto no hospital e que ainda seria gasto também influenciou essa decisão. Com dinheiro suficiente ele montou a seguradora, sozinho, sem o sócio anterior. Transferiu uma boa parte para minha conta, eu não concordei, mas foi por conta própria. A maioria das pessoas que vinham nos visitar era da família dele. Uma tia de longe, a prima surfista, os primos gêmeos. Assim, os dias iam passando e todos que vinham me faziam a mesma pergunta. Se eu conhecia o doador. Não tinha pensando naquilo até então. A ideia de saber quem tivera me dado a chance de viver me deixava apreensiva. Era muito estranho querer aquilo. Mas passei a buscar por informações que me levassem ao doador. Afinal, eu devia minha vida a essa pessoa, a família. No hospital, seria impossível conseguir. Bem, eu tinha minha mãe que tinha uma amiga, assistente social que trabalhava para os hospitais. Talvez ela pudesse ajudar.

A Vez do AmorOnde histórias criam vida. Descubra agora