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Sofia cresceu no seio de uma família tradicional e conservadora e foi educada segundo os valores da moral e dos bons costumes. Tem um irmão mais velho, José Maria, sucessor na
presidência da empresa de construção da família e fonte de orgulho para toda a família. O futuro que a família havia planeado para Sofia não fugia muito ao do irmão, mas a verdade é que os negócios de família, que já vinham do tempo do seu avô, pouco ou nenhum interesse lhe despertavam. Pelo contrário, o mundo do burlesco fascinava Sofia e o seu grande sonho era construir o seu próprio futuro profissional como bailarina burlesca e modelo alternativa. Contudo, tinha a perfeita noção que tal seria totalmente inaceitável para a sua família.

–Mas será que não percebe que nós planeámos o que achámos que seria melhor para si? – Explicou Madalena. Tantas e tantas vezes que esta e outras conversas semelhantes haviam tido lugar entre Sofia e os seus progenitores.

–Pois, o problema é exatamente esse: foram sempre vocês a decidir a nossa vida por nós e eu não concordo com isso! – Exclamou Sofia, cada vez mais saturada por ter que explicar o
mesmo assunto pela enésima vez.

–Querida, nós só não queremos que lhe falte nada no seu futuro. E tem que concordar que, tendo um lugar na empresa, isso lhe dará mais garantias.

–E isso implica sacrificar a minha própria vontade e necessidade de realização pessoal? Vocês sabem perfeitamente que nunca fez parte dos meus planos profissionais assumir um lugar na empresa. Entendam isso de uma vez por todas!

–Já chega! – Exclamou Henrique batendo com a mão na secretária e levantando-se do lugar. – A menina aqui não tem quereres! Você vai trabalhar para a Vieira Construções, tal como o seu irmão, e acabou-se!

–Não, não vou! Estamos a falar do MEU futuro, da MINHA vida! Como tal, eu tenho uma palavra a dizer e não me podem obrigar a seguir um caminho que eu não quero!

–Mas quem é que a menina pensa que é para falar nesse tom? – Questionou o patriarca sentido a sua autoridade posta em causa.

–Alguém que sabe o que quer e que pensa pela própria cabeça! Deixem-me ser independente e seguir o meu próprio caminho, por favor!

–Se é independente que a menina quer ser, então, saia imediatamente desta casa! – Ordenou Henrique apontando para a porta.

–Querido acalme-se, não tome nenhuma atitude de cabeça quente! – Madalena bem tentou tranquilizar o marido mas sem qualquer sucesso.

–Você cale-se! – Respondeu Henrique de modo ríspido. – Está a ver? Está a ver no que deu a sua permissividade? Nunca se soube impor e o resultado está à vista! – Reclamou.

-Eu fiz o melhor que pude, Henrique. Mas se a nossa filha já disse que não quer seguir carreira na empresa… – Respondeu Madalena amedrontada com a reação do marido.

–Não diga disparates, Madalena!! Admita de uma vez por todas que nunca soube educá-la como deve ser! – Bramiu Henrique.

–Não admito que fale assim com a mãe! – Insurgiu Sofia, desagradada com o modo como o seu pai se dirigia à sua mãe.

–Você não admite nada! Quem manda nesta casa sou eu! – Gritou Henrique batendo com a mão na secretária mais uma vez.

–Muito bem! Se quer mandar, então mande à vontade no que quiser e em quem quiser. Em mim, não manda mais! Com licença. – Abandonou a biblioteca e subiu furiosamente a
larga escadaria forrada a azul e dirigiu-se ao seu quarto. Já tinha aguentado muita coisa vinda dos seus progenitores mas desta vez tinha atingido o seu limite. Estendeu sobre a cama a maior mala de viagem que tinha e atafulhou-a com todas as peças do roupeiro que lhe vinham à mão.

–O que é que aconteceu desta vez? – Perguntou José Maria calmamente encostado à ombreira da porta. Era impossível não ter ouvido a discussão que ocorrera instantes antes e que,
mesmo tendo tido lugar na biblioteca à porta fechada, qualquer pessoa nas proximidades teria ouvido na perfeição.

–Já não se bate à porta nesta casa? – Reclamou Sofia exaltada sem desviar a atenção do que estava a fazer.

–A porta estava aberta, não tenho culpa! – Justificou-se com a mesma calma.

–O que é que tu queres? Se vieste cá dizer-me que devia aproveitar o lugar que o pai me quer oferecer na empresa, então mais vale dares meia-volta e sair por onde entraste! Nem toda a gente quer viver à custa de tachos, sabes? – José Maria era quase como que uma réplica do seu próprio pai. A defesa dos mesmos valores tradicionais, aliada à força da sua juventude, fazia dele o sucessor perfeito para, um dia mais tarde, vir a tomar conta dos destinos da Vieira Construções & Filhos, Lda. E, apesar de, por vezes, entrarem em choque, a relação que mantinham enquanto irmãos, não era tão intempestiva como aquela que Sofia tinha com o seu pai.

–Ai sim? Então diz-me, querida irmã: o que é que pretendes fazer da tua vida, então? Estou bastante curioso.

–Não sei… o que eu sei é que não fico nesta casa nem mais um minuto! – Afirmou assertivamente Sofia fechando a mala com a mesma pressa com que a tinha aberto.

–Se tens a certeza que é mesmo isso que tu queres…

–Absoluta. Não consigo ficar numa casa a ver outras pessoas a decidirem a minha vida por mim e não fazer nada! Lamento, mas não consigo, desculpa! – Exclamou esbracejando.

–E já agora, vais viver de quê?

–Escusas de fingir que te preocupas comigo, Zé Maria. Já estou habituada a desenvencilhar-me sozinha! – Pegou na mala e colocou-a em pé, já pronta a ser levada.

Entretanto foi buscar mais outra mala, menor, mas do mesmo conjunto da primeira, onde arrumou as peças de vestuário que restavam no roupeiro, e uma mala nécessaire onde colocou os seus produtos de higiene e cosmética e outros itens similares.

–E só levas isso? – Perguntou José Maria estranhando que todos os pertences da irmã coubessem em apenas três malas.

–Por agora, sim. Não que tenha muita vontade de cá voltar, porque não tenho, mas é só mesmo para vir buscar o resto das minhas coisas. Isto, se entretanto não tiverem mudado a fechadura da porta! – Exclamou com sarcasmo.

Finalmente pegou nas malas e abandonaram aquela divisão. Chegados ao Hall de entrada Sofia voltou a cruzar-se com o seu pai, que se encontrava concentrado a ler o Diário Económico na sala de estar. O som dos passos abafados pela alcatifa que cobria todos os degraus fê-lo interromper a leitura.

–A partir do momento em que sair por essa porta, deixa automaticamente de pertencer a esta família, entendeu?

–Perfeitamente. E, no que depender de mim, há-de ser tarde ou nunca que me volte a ver entrar nesta casa! – Encaminhou-se para a porta, poisou as malas para abrir a porta, voltou a pegar nelas e saiu finalmente, sob o olhar atento e estático de Henrique e José Maria.

Tudo Tem Um Fim Where stories live. Discover now