47| Memórias

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Uma dúvida habitava minha cabeça há dias. Desde que cheguei aqui, em Pandora, todos contam momentos de minha vida que não me lembro, histórias e memórias que parecem absurdas, mas insistem em dizer que pertencem a mim.

Levantei da cama para olhar a vista – a original, dessa vez – a paisagem industrial e tecnológica de sempre. Tento imaginar como era viver lá embaixo, longe do luxo da Embaixada.

Ben contou-me uma vez, que os espelhos podem mostrar lembranças, momentos de nossas vidas, e, inclusive, vi alguns momentos de minha vida quando cheguei. Parecia surreal tudo que vi, bem diferente da vida no campo e dos trabalhos para escola, da preparação para a faculdade e os metrôs lotados todos os dias.

Caminhei até o espelho da parede e atravessei-o. Eu tentaria descobrir sobre meu passado lá dentro, talvez eu conseguisse. Dessa vez, a sensação de estar sendo arranhada diminuiu, mas ainda permaneceu enquanto avançava; novamente o líquido me cobriu por completo, como da primeira vez, ao pisar no chão da sala fria. Ao escorrer, a roupa justa me evolveu, porém numa coloração diferente, um dourado levemente amarelado, parecendo um belo pôr do sol do alto de uma montanha.

Bem vinda de volta, milady — sussurrou.

Milady?

Sim. Milady.

Eu havia esquecido que a voz podia ler meus pensamentos.

— Bem, serei direta. Como acesso minhas memórias perdidas?

Senti um gelo revirar minha mente, como mãos cavando incansavelmente um diamante na terra seca. Um frio percorreu minha espinha e estremeci com a sensação daquela coisa em minha cabeça. Fechei os olhos e enfraqueci diante da situação.

Minhas mãos começaram a tremer freneticamente. Não sentia as pontas dos dedos, elas estavam congelando. O gelo subia por minhas veias lentamente, enrijecendo cada fio do meu braço, e crescendo formando estacas finas e pontiagudas.

Meu coração acelerou. Vários flashes, momentos de minha vida, passaram diante de meus olhos, até que meu coração parou. Tudo parou.

O gelo que cobria minhas mãos e mente desapareceu, então a voz disse:

Interessante. Venha, vou lhe mostrar suas memórias.

Chequei minhas mãos diversas vezes até ter certeza que não estavam mais congeladas, além disso, respirava com dificuldade.

Vamos logo, antes que a Senhora dos Reflexos volte sussurrou, movendo a luz mais longe e quase me deixando no breu.

Foi difícil caminhar após ter sido congelada, mas apressei o passo a medida que a luz avançava.

Aqui estão todas as suas memorias, toda sua vida se baseia nesses fatos, inclusive o futuro. — Um espelho prateado, com raios em cristal surgiu em minha frente — Beba o líquido e relembre daquilo que procura. Um dos raios estendeu uma taça, também prateada, a mim. O líquido era negro, porém cintilava conforme a luz entrava em contato, formando uma dança no copo.

— Qual é o preço, por tudo isso? — perguntei.

É mais esperta do que disseram. Bem, terá uma divida com os espelhos. Se tornará uma das Ceifadoras dos Portais, protetora dos sete cristais da vida e da morte.

Mas que diabos seria isso?

As Ceifadoras dos Portais são almas que possuem o dom de cruzar espelhos e trazer com si outras almas para atravessá-los também. Existe um mundo além desta sala, chamado de O Paraíso, a terra da magnitude, da prosperidade; elas podem levar e tirar habitantes dele. 

O Paraíso? Nunca ouvi ninguém mencionar isso, nem mesmo a Primeira Dama ou Kimmy.

— Certo, e o quê isso exige de mim? 

Por enquanto nada, não se preocupe. Também não diga absolutamente nada sobre sua dívida, nem sobre a marca que irá receber. Todas as Ceifadoras possuem o emblema de O Paraíso marcado na pele — respondeu a coisa.

Tudo bem, é o preço para ter as memórias tão cobiçadas de volta. 

Estendi o braço esquerdo para frente, ao passo que o desenho de várias linhas cruzadas formavam um emblema em meu pulso. Não doía, apenas ardia e aquecia meu pulso frio.

Agora veremos suas memórias, completou.

O espelho parecia exibir um filme longo e denso, mostrando vários momentos de minha vida; aos poucos, eu ia lembrando de cada momento como se aqueles vividos em 2020 fossem se apagando e dando espaço as memórias de verdade. 

Lágrimas surgiam no canto dos olhos ao perceber que nunca ouvi minha mãe cantar uma cantiga folclórica urbanizada ao pé da cama, enquanto eu fechava os olhos lentamente e mergulhava profundamente na terra dos sonhos. Ao invés disso, noites de frio e fome, em um casebre escuro, iluminado apenas por uma lâmpada com fiação improvisada, roubavam todo espaço de minha mente fazendo meus joelhos estremecerem. Lembro-me da dor no estômago de tanta fome, lembro de correr quilômetros tentando despistar homens enfurecidos com minhas trapaças. As trapaças, lembro-me delas como se ainda fossem frescas em em minha mente, lembro de cada mentira que contei, cada bordel e bar que entrei, lembro de cada sujeito que matei. Eu já matei pessoas, com minhas pequenas e ágeis mãos, ensanguentadas carregando o peso de mais um dia de descontrole das situações.

Precisei reunir fôlego e puxar o ar com força para prosseguir.

Lembro do dia em que desafiei um guarda oficial da embaixada a me matar. O guarda, aquele maldito guarda cujo salvou minha vida e eu odiava admitir isso, ainda mais para ele. Carter, ele era o guarda oficial que lançou um tiro letal na direção do homem que segurou me pescoço tão fortemente, que jurei partir para a terra sagrada dos deuses naquele momento.

Eu roubava dinheiro de bêbados para tentar me sustentar, até o dia em que aceitei participar do Jogo das Virtudes. Os malditos jogos, com o qual conheci Ben e salvei sua vida, naquela batalha, no ultimo round*, me negando a matá-lo e bolando um plano improvisado de última hora para que nós dois pegássemos o último objeto da virtude e destruíssemos ele juntos.

Depois disso, veio a briga com Carter, quando tentei matá-lo por achar que ele teria ido ao meu encontro para tentar me avisar sobre alguém. Depois desse dia, nunca mais o vi, porque caí num espelho e voltei para 2020. 

Esse dia, nada é claro nele, exceto meus berros com Ben.

" — Calma Joy, aonde você está indo? Você está ferida, não pode continuar assim — falou Ben desesperado.

— ME LARGA BEN! Eu vou acabar com isso de uma vez por todas! VOCÊ NÃO PODE ME IMPEDIR DE PARAR AQUELA MALDITA! — berrei.

— De quem você está falando? Joy, você tem uma viagem para amanhã, está toda ralada e ainda quer fazer o que?

— Sim, eu tenho mesmo uma viagem! Mas antes, alguém vai fazer uma visitinha no inferno, e adivinha, eu pago por ela!"

Isso é a ultima memória que lembro e que o espelho mostra.

Voltei para meu quarto, extremamente confusa. Eu sentia raiva e me sentia desolada.

Minhas, MINHAS memorias foram arrancadas de mim, tudo que eu era, por tudo que passei, por todos os sufocos e minhas metas, eram o que me motivavam a viver, davam sentido e me faziam ter noção da vida. Tiraram de mim tudo que eu era, me fizeram acreditar em uma nova Joy que não se importava com nada além da cor do vestido que iria usar na festa do dia seguinte. Eu odeio isso, amaldiçoo com todas minhas forças quem quer que tenha arquitetado essa mentira. 

Eu só queria desaparecer, entrar em um buraco e cair. 

— Joy! O que houve? — Kimmy entrou no quarto e veio em minha direção.

— Eu lembro de tudo Kimmy, lembro dos meus dias antes dos jogos, lembro dos jogos, lembro de tudo. Menos do dia em que desapareci.

Ela ficou espantada, mas veio em minha direção e me abraçou.

—  Eu fui patética durante todos esses meses, quando a anos atrás barganhava minha sanidade com a sorte. —  Então, finalmente caí em lágrimas, como sempre fazia ao voltar de uma noite em que quase morria.

Deadly Mirrors - 1° Rascunho - CONCLUÍDAOnde histórias criam vida. Descubra agora