corte de sombras e pesadelos • azriel × asteria | EM PAUSA

capítulo 01: the hollow

PARTE 1: THE HOLLOW
CAPÍTULO 1

    Asteria assistiu ao corpo de Kieran ser retirado do pátio, no que pareceram ser horas depois de ter assistido o irmão ser decapitado. Ela não fazia noção de que horas eram, ou de quanto tempo havia passado sentada no telhado daquele prédio, observando e... esperando.

    Esperando que um daqueles malditos soldados prostrados em seus postos de guarda finalmente se movessem e fizessem seu trabalho removendo o corpo. A chuva já havia lavado todo o sangue acumulado sob a forma sem vida estirada no chão. Asteria perdeu as contas de quantas vezes sentiu um arrepio cruzar seu corpo, causado não em função do frio de congelar os ossos mas pela visão assustadora que tinha dali, ao encarar o irmão lá embaixo.

    O rosto outrora vívido, corado, forte, que não sofreu mutações em sua aparência no geral, mas que mudou de expressão conforme resistia a um desafio após o outro. O desafio de sobreviver na Cidade Escavada, abandonado à própria sorte. Mas ainda sim conseguindo sorrir ao final do dia, quando voltava para o Cove e encontrava a irmã. Kieran, assim como todos os outros que viviam no Cove, não eram considerados boas pessoas, mas era o macho mais íntegro que Asteria conhecia, e levando em consideração as circunstâncias nas quais viviam a opinião que ela tinha sobre ele significava muito.

    Agora, ao olhar para a cabeça quase separada do corpo no pátio da casa do Oficial Martell, aquele que havia dado a ordem para a execução de Kieran, Asteria não viu nada além de uma casca do que um dia fora seu irmão. Sequer teve a oportunidade de se despedir, mas se lembrava da última conversa que teve com ele.

    Kieran tinha voltado de uma negociação de uma carga roubada no Mercado das Facas e se deparou com uma Asteria suja de sangue e terra. Ela havia ido à Arena, outra vez. Havia ido lutar tantas vezes naquele mês que ele tinha parado de tentar fazer uma contagem de ocasiões em que ela tinha escapado, mesmo assim ele ainda tentava impedir. Era inútil tentar conter e impôr limites para ela. Kieran disse que odiaria ter que ir aquele lugar buscar o corpo dela quando alguém muito mais forte, mais hábil e mais cruel a desafiasse, então Asteria havia sorrido para o irmão, enquanto subia as escadas rangentes, rumo ao cubículo no andar de cima que ela chamava de quarto, e dissera a ele que ainda não fora dessa vez, ela ainda não tinha perdido.

    Mas agora um sentimento havia crescido em seu peito, corroendo cada pedaço seu, zombando dela, ecoando em sua mente com uma voz amarga que ela estava errada. Tinha perdido. Tudo. Não havia mais nada pelo que lutar. Nada a perder. A fêmea sentiu a ânsia arder em sua garganta. Depois de tanto tempo experimentando o que era ter alguém que se importava e nunca a abandonaria, ali estava ela, completamente sozinha mais uma vez.

    Encolhida sobre as telhas, em um lugar e posição que ela sabia que não seria descoberta, ela notou quando, ao sinal de que a chuva havia dado uma trégua, dois soldados, machos fortes, bem armados e trajados com armaduras escuras, com o brasão do Oficial Martell gravado em seus peitos, saíram, caminhando sem nenhuma pressa até onde o corpo havia sido deixado sem nenhuma cerimônia. Os dois soldados envolveram o corpo de Kieran em um saco de juta, um deles o jogou sem jeito sobre o ombro e seguiram por um corredor de pedra.

    Asteria sabia o suficiente sobre Martell para ter certeza de que quem morria naquele salão aberto de horrores não tinha nenhuma chance de receber um funeral digno, a maioria deles era indigente, e se qualquer um tivesse uma família essa na maioria das vezes não reivindicava o corpo. Os corpos sequer seriam devidamente descartados, nada de cremação para os criminosos punidos por Martell, nenhum deles era considerado merecedor de purificação antes de serem enviados ao outro lado. A Mãe não os receberia, então seus corpos eram carregados até uma balsa no porto e levados até uma ilha inóspita bem longe dali, eles apodreceriam sem nada.