doze dias antes do sol nascer

293 19 15
                                    

doze dias antes do sol nascer
despenquei mórula sobre a tumba fria da minha ira
repousei no descaso, fiz dele morada e por ele fui abraçada

onze dias antes do sol nascer
relembrei de lisuras partidas
estocadas no sumidiço das almas
ressequidas, entorpecidas pela tristeza de ser o que não é

dez dias antes do sol nascer
velhas ternuras
o calo nos dedos e os dedos sujos nos pés cheios de nervuras
ósseas e lassas sobras
perseguido-me através das sombras talhadas na parede escura
nos cantos nulos
enquanto inquieta a lua ferida
julgando-me

nove dias antes do sol nascer
esqueci-me do apreço, encolhi-me recolhendo-me dentro de mim mesma, num caracol de véus e fibras, e lacerada eu mesma desejei que a noite de mim fugisse e que eu dela a presença renegasse

oito dias antes do sol nascer, roguei fervorosamente pelo sétimo dia.
no meio da mágoa, angústia e remorso deliberei insultos e agulhas
gritei como louca, e favas recheadas de palavras fechadas vomitei
depois de um surto madrugado
desfaço as malas
derruídas
e temo padecer apetecida
como se fosse na verdade
uma fruta apodrecida

sete dias antes do sol nascer
debrucei-me num pêndulo
entre a cruz e a espada, uma boca calada
uma rosa trancada
encarceirada
presa na ruína da minha própria
rima
divagando sólida como lágrima encerrada
penada

seis dias antes do sol nascer
choveu amarguras infindas sobre o telhado
juras listradas, antigas partituras
um clarão de carícias
brotava esperançoso do meio das nuvens escuras, em cena de derrilição,
depois do moinho, os juncos afogados
clamando, enquanto eu, rezando num rito, fazia-me torpe companheira do grito

cinco dias antes do sol nascer adormeci entorpecida, pela vaga luz do luar ensandecida.
vislumbrei ensolaradas manhãs, os campos de girassol que coloriam saudosas paisagens até o além do horizonte
um pássaro aturdido, serelepe saltitante
entre o capim e a estrada

quatro dias antes do sol nascer despertei sobre a cesta palha, caída entre o cipestre e o cedro
olhei pela janela os cães em ronda noturna e bela imagem iluminada em meio a folia de corpos, embalsamados
molhados de luz e fadas
e delirando tessituras, reflexos e cruas pontes
desfiz-me numa imagem residual

três dias antes do sol nascer
enlaçada nos lençóis abertos
suja de espadas
golpeada pela minha própria ânsia, comendo livros de outrora
e vaga recobro a visão embaciada
efêmera é a razão que minha sanidade sustenta e temo, embora já seja,
esquecida ser

dois dias antes do sol nascer
radiosa impala
que ritualiza e golpeia
nas janelas um puro ruído que o vento ventou
buscas escuras bruscas
radiosa impala
galopeia
as horas regurgitando
uma estrela cadente desabou a tombar, mas seu reflexo sobrevoou
a lira lúcida quebrou os ossos
fez cair me os dentes
esperamando-se pelo chão da sala

Um dia antes do sol nascer
recolhi-me num ninho
espiralado
troquei versos e rimas
tornei-me um espinho
caí numa vala
roguei dura fala
tecendo na luz opala
que a sala escura preenchia
um candelabro de medos e modos
lendas e contos
de fotos e rostos
e quando finalmente despontou
a aurora da manhã
apenas resquício de mim
sobrou

Os Versos de OutonoOnde histórias criam vida. Descubra agora