a festa das raposas

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Hoje é dia 19 é eu ainda estou aqui, mas e se eu não estivesse, onde estaria?

Estaria plantando uma árvore, colhendo amoras ou sorrindo sob um balanço como naquela mesma tarde do dia 19 de dezembro do ano passado?

Se eu não estivesse aqui, onde mais eu estaria?

Tomando café numa cafeteria em Paris, ou aproveitando Porto Seguro, areia e sol sobre a pele dourada?

Onde estaria agora, se não aqui?

Nos campos juntos dos meus? Ou na floresta na festa das raposas?

Onde estaria eu, que não aqui?

Aqui estou, verde de novo
de cabelos pretos, fulvos
E vagas
finas desenhadas
algumas outras coisas

Aqui estou, crua novamente
Num aguado de malva
Fulva, feixe de flautas, calha
Num afresco, entre a palha
e o dente
Como uma válvula,
hoje túgida-mínima,
outrora decadante

Aqui estou eu, debruçada e sorridente
Pendurada, num timbre liso
deslizando escorregadia
trazendo no pulso uma marca eloquente
De antes, mas agora sou outra
uma figura distante, uma nova semente

Aqui estou eu e minha voz estridente
aquele que ronda, mas nunca nem ontem nem hoje, aquela que nunca mente
Olhando, depois dos pastos
as gargantas vítreas
os ventres plexos
Os olhos rentes

Aqui estou eu, com o riso nos dentes
escorrendo líquida
deixando pra ontem, e mentes
Presas no nó ínfimo de um laço
lanhada, anteposta e presente
num rio de cascos,
num cisco no olho
Num olho ascendente
num coração acidente

Bem aqui e agora estou eu, e parece que não estar não me cabe
vagido, percorrendo através da janela
com um gemido, a vontade de escapolir
tenho olhos que já não são meus
tenho na face um adunco, nariz
Tenho no quarto lembranças e tenho tudo para manter-me aqui, aqui mesmo
nestes versos, nesta tarde nublada, neste amor
Mas ainda sim, me pergunto:
Onde estaria eu se nunca tivesse vindo aqui? Onde estaria eu se não tivesse pegado o bonde naquela tarde com destino a este quarto a meia noite em ponto? Onde estaria eu?
Diga-me porque não posso mais dizer-me. Confundo as palavras, o tempo e o espaço. Confundo as promessas o vago e lapso. Onde estaria agora?

Por que estou aqui? É uma boa pergunta, meu caro. Se soubesse pronto já responderia-te. Recebi na terça de manhã um convite, era de Leandra. Chamava-me para a festa para raposas. Tocoriam flautas, cantando cantigas em giros e rodopios, formando uma divertida girândola, com guirlandas floridas sobre os cachos, pendidos na testa.
Fiquei de confirmar, quase confirmei, mas nem mesmo eu sei dizer por que não fui.
Porque não estou lá?
Na festa das raposas e coelhos, saltitando, ao invés de estar aqui. Não sei quero estar aqui, mas já criei raízes, saem dos pés e grudam na bunda. Trancafiado me tornei.
Enraizado, agora sei...
Tenho no peito um emaranhado de folhas, entrelaçando-se sobre minhas costas, prendendo-me aqui. Tenho debaixo do queixo minha mãos, que as uso como apoio, e para apoiá-las a mesinha redonda da cozinha, torta e frágil. Tenho nos pés os cipós enroscados, limitando meus movimentos.
Perguntas-me amigo, porque motivo estou aqui, bom, é o amor que ainda me mantêm. Apenas isso. Porque o amo e sem ele não posso viver, é o que eu sinto.
Mas, nada disso me impede de querer saber: se eu não estivesse aqui, onde e como eu poderia estar?

Talvez estivesse mais feliz do que eu estou agora, menos perturbado, ou talvez não. Talvez estivesse comprando novas roupas, recitando um poema, atuando Hipólita, ouvindo o novo álbum da Mariah Carey, lendo outros versos de Cecília. Talvez estivesse mais sóbrio, nada ébrio, talvez ainda tivesse asas e poderia voar sobre a Copa da árvores, mas nada disso é real. Nada disso aconteceu é só me resta imaginar:
Onde estaria agora que não aqui?

Os Versos de OutonoOnde histórias criam vida. Descubra agora