o manto

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Atravessando a penumbra da noite, na viela escurecida; me sinto como ela, estremecida, tomada de brumas: uma sombra perdida nas sujeiras urbanas, nas paredes tortas. Vejo-a coberta por um manto branco, do dorso as costas, desvencilhando-se, como se carregasse a névoa sobre os ombros. E o vento soprando e capa dançando defasando sucinta as horas. Um escuridume, uma noite cerrada, cerrada como meus olhos naquela madrugada de setembro em que as estrelas caíram. Sim, meu olhos, antes cerrados agora arregalados, presos naquele pedaço de tecido dançando ao sabor de ventos invisíveis, aquele corpo ambulante, aquela mulher transeunte. Quem será ela?. E a cada passo dela adiante afasto-me ainda mais da luz, mergulhando-me na escuridão profunda da angústia que tomou meu coração desde a semana passada quando o crepúsculo se derramou tardio sobre meu rosto suado, encrencado. Quem é ela? 

Desembaraçando-se nos becos, se misturando a tinieblas, esvanecendo-se nas sombras, e eu me sinto mais nu do que nunca. A escurança e frieza da noite me abraçam, não como mamãe costumava, cheia de calor, com seios fartos esborrachando-se na minha cara lívida de fim de brincadeira, mas insolente, como um manto, uma gata na surdina, assoviando pelos muros, nos morros, nas quinas da lua, nos cantos da casa. Como na casa de vovó, cujo aquela cadeira insuportável ficava decorando os canto, me impedindo de ver as dobras da parede. Deus! Se eu pudesse eu quebraria aquela cadeira, a quebraria em mil e uma noites se despedaçando como num livro intermitente, uma enciclopédia do vovô, sem figuras, só letras e rugas inflando a cara, traços e rastros. Sim, é nos rastros dela que meus olhos queriam compenetrar-se, segui-la matutos, procurá-la, como no pique-esconde que Luana e eu costumávamos brincar; é ela então. Ela é a gata noturna, a praga que toda noite fica a sapatear sobre meu telhado frágil, meu teto de vidro, fazendo festa, se insinuando aos gatos desordeiros, sedentos. E eles sambam juntos me incomodando; é por causa dela que já não durmo; é por causa dela que tenho uma insônia; é ela a gata maldita que agora se esconde por trás do manto branco, escondendo sua cara preta. E meus olhos a querem, estão carentes, mas vão atravessando crua e fria miragem, contando vultos, rostos pálidos: o meu um, teu o outro. Mas quem é ela, enfim?

Uma lembrança nebulosa, um rosto assustador, um abraço perdido? Um toque vazio? Um livro não lido? Quem é ela que me assombra sempre que tenho contas pra pagar? Ela é apenas um sonho, uma mera ideia, uma bolsa que já não uso? E grito, grito por seu nome, ou pelo o que acho que seja seu nome, e nela nada me vem: figura imortal me assombrando em cálidas noites. Quem é ela que se reflete no espelho sempre que estou feio, que se espatifou junto com a xícara de mamãe que se quebrou noutro dia? Quem é ela que me faz esquecer as datas, não te ligar quando faz aniversário? Quem é ela que me faz perder as chaves, errar a letra das músicas, me desconcertar no discurso público? Quem é ela que me faz parecer apenas uma simples pessoa, uma miserável, uma qualquer? Céus, quem é ela? Por usa aquela manto? Quem é ela?

Os Versos de OutonoTempat cerita menjadi hidup. Temukan sekarang