Capítulo 54: A primeira guerra.

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Chegamos no acampamento três dias depois, passando as noites na floresta congelada, comendo o que encontrávamos pelo caminho, dormindo em sacos de dormir improvisados. Mas então lá estava, barracas de lona e cabanas de madeira no meio de uma clareira na floresta, cheio de tochas e fogueiras.

Os minutos seguintes passaram como um borrão pra mim. Um homem veio conversar com a princesa, depois fomos levados a barracas, onde pudemos deixar nossas coisas e descansar, recebendo um prato de comida logo em seguida. Eu estava sentada na frente de uma lareira que fora construída na lateral da barraca. Estava terminando minha comida, enquanto observava Axel arrumar as coisas na cama improvisada no chão.

—Kenji me disse que Lyra e a princesa iriam fazer uma reunião com aquele homem que nos recebeu. Pelo que ele soube o homem trabalhava para o rei dessas terras. —Axel olhou pra mim, talvez esperando alguma reação minha sobre o fato, mas eu apenas continuei comendo. —Você quer participar?

—Kenji vai? —Indaguei, vendo Axel negar com a cabeça.

—Ele já deve estar do decimo sono nesse momento. O garoto também foi dormir. Só Cedric e as duas iam. —Axel se aproximou de mim, me observando com atenção enquanto eu soltava o prato já limpo em uma caixa virada para baixo que servia de mesa. —O que quer fazer?

—Estou cansada. —Falei, sentindo meu corpo inteiro dolorido depois de tantos dias caminhando na neve. —Você pode deixar as sombras em alerta, de qualquer forma.

—Elas sempre estão. —Afirmou, enquanto eu abraçava meus joelhos e olhava para as chamas da lareira. —O que foi?

—Nada. —Dei de ombros, sentindo ele se aproximar de mim. —Só estou realmente cansada.

Estava com sono. Sabia que só precisava deitar a cabeça em qualquer lugar que apagaria em instantes. Mas também sabia que isso ia me levar direto aos pesadelos que me assolavam toda noite. Eles haviam diminuído nos últimos dias, mas quando aconteciam, era como se uma lâmina estivesse atravessando meu peito.

Escuto meus irmãos gritando. Vejo-os implorando por ajuda. Observo Simon matar os dois de novo e de novo, sem que eu possa fazer nada além de correr para longe quando tudo termina. Quando acordo, sinto a sensação excruciante de perdê-los nos meus ossos, me atormentando o restante do dia.

Quero parar de ter pesadelos, assim como gostaria de ter salvado os dois. Mas eu não salvei. Não estou melhorando quanto a culpa. Não estou me sentindo menos mal por isso. Tudo que eu tenho são pensamentos ruins e eles estão me devorando aos poucos a cada dia. As vezes a pior coisa que alguém pode fazer é tentar sobreviver. Estou começando a duvidar de mim mesma.

—Kay? —Axel se ajoelhou atrás de mim, me puxando para o seu peito, me aninhando contra ele. —O que está havendo? Desde que aceitou entrar nisso, você tem estado distante.

—Hm... não vamos negar que nosso relacionamento nunca foi muito convencional, não é? —Falei, escutando ele soltar um suspiro pesado. —Estou bem, Axel. Juro.

Eu costumava dizer muito isso a ele. Era uma mentira fácil de dizer, assim como abrir um sorriso também era. Mas era Axel e não havia ninguém no mundo que me conhecesse tão bem quanto ele. E ele sabia que eu estava mentindo quando jurava aquilo. Ele tinha certeza disso.

Axel não falou nada, apenas respirou fundo e me pegou no colo, me carregado até a cama improvisava. Me enfiei embaixo das cobertas, observando ele tirar os sapatos e se deitar ao meu lado, me puxando para perto dele e me abraçando.

—Não está. —Murmurou contra minha testa. —Mas vai ficar, Kay. Prometo a você que vai.

[...]

Você só precisa pedir por favor...

Abri os olhos, me sentando e olhando para a barraca ao redor. Eu estava suando e com o coração martelando no peito. Uma sensação ruim se arrastava pela minha pele, me fazendo esquecer que eu estava em um pesadelo. Simon estava morto. Minha mãe estava morta. Meus irmãos estavam mortos.

Olhei para Axel, vendo-o dormir de forma pesada ao meu lado. Ele costumava acordar quando eu o acordava a beira das lágrimas e gritando depois de um pesadelo. Mas quando eu apenas acordava com essa sensação terrível, ele normalmente não via e eu nunca o acordaria de propósito para contar. 

Fiquei de pé e coloquei roupas quentes, saindo da barraca para o acampamento. O dia estava cinzento, ainda a beira do amanhecer. Algumas pessoas já caminhavam pelo acampamento, colocando lenha nas fogueiras e preparando o café da manhã. Alguns deles passavam por ali e olhavam na minha direção com curiosidade e outros desconfiados. Olhares que eu já estava mais do que acostumada a receber.

—Kayla? —Olhei para o lado, curvando os lábios em um sorriso pequeno quando Miriam se aproximou com um sorriso. —Quanto tempo, garota.

—Bastante, não é? —Umedeci os lábios com a língua. —Acho que a última vez foi quando fugi da biblioteca.

—Depois de descobrir sobre as ideias do príncipe e do rei. —Ela assentiu. —Você estava muito irritada naquele dia. Muito mesmo. Mas eu entendo você.

—Poucas pessoas entendem. —Falei, encolhendo um pouco os ombros. A observei, lembrando da fada da luz que conheci naquela biblioteca. —Você era uma guardiã.

—Era. —Ela se aproximou mais. Estava carregando uma cesta de frutas, provavelmente ajudando as pessoas do acampamento. —Meu tempo já passou. Deixei de ser merecedora de ser uma guardiã. Agora me ocupo em ajudar no que posso. Lyra e Diana contaram sobre esse lugar para mim e Alex, então viemos pra cá. Somos mais úteis aqui do que em uma caverna.

Olhei ao redor, sentindo aquela sensação estranha do pesadelo ir embora. Mas havia uma sensação nova. Uma de estar sendo observada. Mas eu já estava acostumada com essa. As sombras de Axel se enrolaram nas minhas pernas, subindo lentamente. Não sabia se isso significava que ele estava acordado, já que as sombras também tinham sua própria personalidade.

—Miriam? —Me virei pra ela, ponderando sobre a pergunta que iria fazer. —A primeira guerra, quando vocês foram criados e enviados para lutar contra aquele conjurador que se voltou contra os outros... em algum momento, quando ela acabou, você ou os outros sentiram que poderiam ter feito mais do que fizeram?

—Sinto que essa pergunta não é sobre a guerra. —Ela ergueu as sobrancelhas e eu apenas dei de ombros. —A sensação de culpa e de não ter feito tudo que podia sempre existe, Kayla. A questão é a forma como você lida com ela.

—E como vocês lidaram com ela?

—Usamos ao nosso favor e não contra nós. —Ela fez menção de me tocar, mas se afastou quando eu me retrai. —Usamos para nos tornar mais fortes. Usamos para fazer tudo que podíamos quando tivemos outra chance.

—E se não houver outra chance? —Indaguei, comprimindo meus lábios. —E se não houver mais nada?

—Sempre existe outra chance, Kayla. —Ela começou a se afastar. —Use-a ao seu favor e não contra si mesma.



Continua...

Um Mundo de Sombras / Vol. 2Where stories live. Discover now