Ⓔ01 Ⓒ02 ✖ ANDRIES

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O jovem de cabelos caramelo e olhos negros corria apressado para casa depois do seu expediente. O caminho diário que fazia do trabalho para casa era um tanto infeliz, não por ter de passar por ruas perigosas e duvidosas, mas por ter de atravessar o lado mais bem apossado da cidade, onde casas eram do tamanho de prédios – não em altura, claro, mas também não fugia muito disso – e onde rapazes como ele eram serviçais.


O tom imundo do fumo negro da soldagem estava grudado em seu rosto e o cansaço estampava seus olhos semi abertos.
Um enorme caminhão de mudanças se atravessou à sua frente e estacionou a meros metros de si, em frente a uma enorme mansão recém construída e que já havia sido comprada. Os dois andares pareciam verdadeiros palacetes e ele se questionava como seria o seu interior, em sua curiosidade infantil.

— Eu não posso crer que eu pago uma fortuna aos meus funcionários para ser deixado na mão! — Um homem parrudo e calvo reclamava aos gritos, não se importando que não fossem ainda, sequer, sete da manhã.

— A mulher dele entrou em trabalho de parto. — Um dos seus três funcionários comentou num tom meio amedrontado.

— Desculpas! E agora, onde eu vou arrumar um substituto a uma hora dessas? A senhora Elise Braisser quer tudo isso pronto até o fim da tarde! — Seu tom exaltado falhava enquanto falava, acabando por fazê-lo tossir como consequência. Andries suspeitou que fosse culpa do tabaco. — Ei, você aí! Não está afim de ganhar uns trocados? — O homem perguntou, apontando para o rapaz.

— Quem, eu? — Andries Beckers pulou de susto, olhando ao redor em surpresa.

— É, sim, você! Está vendo mais alguém aqui, além de nós? — O homem estava mal humorado e impaciente e Beckers assentiu negativamente com a cabeça à pergunta retórica dele.

— Eu querer, até quero, mas eu tenho de levar meus irmãos para a escola. — Andries respondeu com medo, entendendo o modo como aquele funcionário respondera ao chefe anteriormente.

— Mas depois de levar, você pode? — insistiu sem um pingo de paciência

— Posso sim. — O jovem respondeu prontamente, com o meneio veemente de cabeça.

— Então vá num pé e volte em outro! De acordo?

Andries assentiu e correu na direção de casa. Esse pequeno trabalho viria mesmo a calhar, pois ele precisava de dinheiro para encher a despensa. Não importava o quanto ele estava exausto e precisasse dormir, pois ele necessitava do dinheiro para muito mais coisas, mas a prioridade era alimentar os seus pequenos irmãos mais novos.

Ser o responsável pela família, órfã de mãe e abandonada pelo pai, era uma tarefa extremamente difícil para o jovem Beckers. Ele mal havia saído da adolescência e já tinha responsabilidades sobre três pessoas. Ele mesmo e seus irmãos gêmeos, Aletta e Bartholomeu. No entanto, Andries se negligenciava para poder providenciar tudo aos irmãos, mas até nisso ele estava falhando.

Com três part-times, ele tentava juntar dinheiro suficiente para alimentar os irmãos, pagar as contas e a casa, mas nunca era o suficiente.
Havia meses em que ficavam sem luz. Havia outras em que a comida rareava. E havia aqueles meses em que a conta da casa ficava atrasada.
Ultimamente os juros haviam piorado tudo e agora Andries não tinha nem dinheiro para pagar os três.

Assim que chegou em casa, ele se apressou a acordar os irmãos.
Os pequenos ainda não sabiam o significado da palavra dificuldade, mesmo que já o sentissem. Para eles eram apenas infortúnios, esquecimentos, avarias misteriosas de uma casa tão velha quanto o avô deles.
Andries corria de um lado para outro na sua diminuta habitação de madeira, incentivando seus dois irmãos mais novos a se apressarem para não chegarem atrasados. O sonolento casal de gêmeos se arrastava pelas divisões entre o quarto e a cozinha, fazendo o piso velho ranger a cada passo que davam, como se de uma mansão assombrada se tratasse.

A fraca luminosidade era de se ter cuidado para não tropeçar em nada ou sequer ir de encontro às paredes e portas, mas o já hábito matinal repetido ao longo dos anos, facilitava-lhes o refazer do caminho pelo corredor até mesmo de olhos fechados.

Andries cuidava de encontrar algum bocado de pão para oferecer aos irmãos, mas infelizmente ainda não tinha tido oportunidade de comprar novos alimentos, por isso a dispensa se encontrava vazia. Esperava reverter a situação o mais brevemente possível, assim que ganhasse o pequeno dinheiro do extra que estava para fazer.
Pelo menos era isso que ele dizia aos irmãos.

— Andri, a gente está com fome — Aletta reclamou, esfregando seus olhos castanhos pesados e remelentos.

— Eu sei, mas eu esqueci de comprar o pão e agora nós estamos atrasados! Na escola vocês comem.

Os pequenos resmonearam sobre o assunto em onomatopeias e pegaram suas mochilas, prontos a sair da velha casa alugada. Andries engoliu o choro ao perceber a que ponto chegara e se lamentava por fazer os irmãos passarem pelo mesmo.

Porta fora, o sempre silencioso Bartholomeu arrancou um papel colado na porta e o entregou ao irmão mais velho. Andries recolheu o pedaço de papel sem saber do que se tratava, mas quando pegou o papel e viu as letras garrafais em vervelho vivo, ele se arrependeu amargamente de o ter lido.

— O que diz aí? — A jovem menina de cabelos loiros trançados, questionou ao irmão, mandatória.

— Nada. É apenas uma nota chata da inquilina. — Mas não era. Não uma nota chata e sim uma declaração da inquilina, impondo o pagamento das três prestações atrasadas.

Caso não o fizesse o mais brevemente possível, a próxima nota seria uma nota de despejo.
O desespero consumiu o peito do jovem Andries, ao mesmo tempo que o sangue gelou sua pele.
Ele tentava parecer calmo perante os irmãos, mas a pequena Aletta era esperta demais para não perceber o que se passava. Já o seu irmão gêmeo, Bartholomeu, era o oposto, acreditando em tudo o que o irmão contava e se contentando com o pouco que recebia.

— Se portem bem e se alimentem direito. — Andries abaixou-se de frente para os gêmeos, os segurando pelos ombros com carinho e os encarando amoroso.

— Eu sei cuidar da gente — Aletta respondeu toda responsável, enlaçando seu bracinho fino no do irmão, que deu um sorriso confortável e assentiu.

Andries sentiu conforto nas palavras da pequena e observou seus irmãos partirem para o interior do edifício estudantil e se juntarem a outras crianças.
Assim que os perdeu de vista, o rapaz iniciou uma corrida desenfreada pelas ruas de Amsterdã, passando na frente de carros em movimento, cortando caminho por atalhos, se desviando de pessoas e alcançando o seu máximo para conseguir chegar até o seu destino.

Ao avistar a rua que mais cedo tinha ficado parado observando, Andries diminuiu o passo até parar, se apoiando em seus joelhos para recuperar o fôlego e as forças.
O enorme caminhão ainda estava lá parado, descarregando aos poucos as peças mais delicadas e caras que alguma vez ele havia visto.

— Você chegou! Venha nos ajudar. — O homem ordenou intransigente, ignorando o fato de Andries estar transpirando e exausto. Ali não havia espaço para recuperar o fôlego.

O rapaz se aproximou de imediato, ajudando um dos homens a descer um cadeirão cor creme, com entalhamento em dourado. Havia mais uns quantos cadeirões do tipo, junto com uma mesa de mogno, o que o fez perceber ser parte de um conjunto.
Enquanto transportava uma dessas cadeiras até o seu interior, Andries pisou pela primeira vez o piso marmorizado da mansão e se perdeu na sua beleza e imensidão.
Seus olhos brilhavam sonhadores, olhando cada pequeno detalhe.

A entrada principal era espaçosa e arredondada. O teto tinha um acabamento abobadado feito de vidro e com vista para o céu limpo e azulado. Caindo do centro da abóbada havia um candelabro brilhante, refletindo os raios de sol por toda a casa através dos seus milhares de cristais. Do lado esquerdo da entrada havia uma enorme passagem em arco para uma sala enorme. Do lado direito havia uma parede com portas deslizantes em madeira e envidraçadas, que davam para uma extensa sala de jantar. Num canto mais escondido da parede, havia um corredor com ligação para a mesma sala de jantar, mas igualmente para mais alguma cômodo que ele não tinha conhecimento, mas que suspeitou ser a cozinha.
À sua frente desenraizava-se uma enorme escadaria feita de grades de ferro fundido, com desenhos espirais e com apoio de mogno, que davam para o andar superior. Dali Andries já conseguia ter uma mínima vista de um longo corredor repleto de portas e cômodos desconhecidos.

— Leve isso para a sala de jantar. — O encarregado pelas mudanças ordenou e Andries obedeceu.

Durante as horas seguintes o jovem pouco tempo teve para voltar a admirar com mais atenção e detalhe a enorme mansão, mas ainda conseguiu visitar cada uma dos cômodos do local, e eles eram muitos.
Depois do descarregamento do primeiro caminhão, mais um chegou. Os homens que estiveram com ele pela madrugada até o final da manhã, foram embora almoçar e novos vieram. Andries pensou que seria dispensado, mas o chefe lhe ofereceu uma refeição rápida e lhe pediu para ele ficar mais algumas horas. Andries aceitou após ter visto a quantidade gorda de euros que o chefe tinha entregado aos seus homens da manhã. Se tudo desse certo, talvez ele conseguisse até pagar uma das prestações atrasadas da casa e comprar algumas coisas para comer.

Ao final do almoço uma bela mulher adentrou a casa, a qual ele suspeitou ser a tal de Elise Braisser, dona da mansão. Seus cabelos negros pendiam lisos sobre o seu busto e uma franja muito bem arrumada emoldurava o rosto fino e triangular dela. Os olhos doces, acastanhados, estavam delineados a preto como se de uma arte se tratasse e sua postura firme e elegante impunham respeito a qualquer homem.

— Quanto mais tempo falta para isso acabar? Preciso ter isso pronto antes de sair e não vou estar aqui o tempo todo.

— Lamento, minha senhora, mas só ao final da tarde isso acabará, o mais tardar depois da hora do jantar.

Os olhos de Andries se arregalaram apavorados ao ouvir o horário. Se ele ficasse ali, poderia perder o início do seu segundo part-time, que começaria um pouco antes do final da tarde. Além de tudo, não tardaria para ele ter de voltar a sair para ir buscar os irmãos na escola.

Se saísse agora, ele poderia perder a oportunidade de ganhar uma bolada de dinheiro e pagar parte das suas imensas dívidas, mas se ele não saísse, poderia perder um dos seus part-times e ainda deixar seus irmãos o esperando na escola até a hora do jantar.
Ele tinha de ponderar profundamente aquele caso, pensar num jeito de alguém levar seus irmãos de volta para casa e inventar uma desculpa de que estava doente ao seu patrão para justificar a sua falta.

Para sua sorte, a última parte do plano tinha corrido certo. Andries conseguiu contatar o patrão e se fingiu de doente, prometendo fazer horas extras no próximo turno. Mas infelizmente, por outro lado, ninguém estava disponível para levar os irmãos em casa.
Não havia jeito, ele tinha de arrumar uma maneira de sair dali por uma hora e não perder o extra.
Com algum jeito, ele se aproximou do chefe mal humorado e fez o pedido.

— Eu precisava sair agora por menos de uma hora.

— O quê? Mas você está louco? Eu estou com uma corda no pescoço com o prazo desse descarregamento. A dona Elise não está nada contente do andamento lento das coisas e você ainda quer que eu fique sem menos um homem por uma hora?

— Eu vou num pé e volto em outro. É que meus irmãos...

— Rapaz, você acha que eu ligo para os seus irmãos? Eu estou pouco me lixando para eles! Eu preciso de você aqui! E se você sair, pode ter certeza que perde o dinheiro que ia ganhar.

— Mas isso não é justo!

— A vida não é justa, meu amigo. Agora escolha: o dinheiro ou seus irmãos.

Aquela foi a decisão mais difícil da vida de Andries, não por causa do dinheiro em si, mas porque precisava dele para cuidar dos irmãos, os sereszinhos mais importantes da vida dele. Mas a decisão teria de ser feita e Andries teria de arcar com as consequências. Ele não poderia deixar os irmãos sozinhos na rua, ao frio, até a hora em que Andries estivesse disponível. E, pelo andar das coisas, ele não estaria livre tão cedo.

O sorriso de Aletta acalentou o coração de Andries assim que viu seus irmãozinhos saírem da escola, correndo em sua direção para um abraço apertado.
Uma lágrima quente rolou seu rosto, afogado em dor por saber que em mais uma noite ele não teria como alimentar os irmãos.

— Olha, Andri, nós trouxemos alguns pães do almoço, para não termos de ir dormir de barrigas vazias — Bartholomeu comentou animado, exibindo a sua mochila contendo meia dúzia de pães secos.

Andries quis sorrir pelo entusiasmo do irmão, mas tudo o que conseguiu foi desabar num choro descomedido.

— Não chore, Andri — Barth pediu, segurando o queixo do irmão com sua mão pequenina.

— A gente vai ficar bem — Aletta garantiu, abraçando o pescoço do irmão mais velho, que fungou e limpou as lágrimas recuperando a força que ele havia perdido por segundos.

— Claro que vamos.

A noite chegava mais negra que todas as outras. Andries não conseguia pregar olho. Olhava os pães secos que havia dividido com os irmão, dois para cada um. Os seus continuavam intocados. No outro canto olhava a ordem de despejo. Em uma semana eles seriam colocados na rua, caso ele não pagasse as três prestações em atraso de uma só vez.
Isso seria impossível, por mais que Andries trabalhasse dia e noite, noite e dia.

Seu olhar apático se perdia nas duas coisas à sua frente. Os pães e o papel. Sabia o quanto seus irmãos estavam famintos pelo modo como engoliram os seus pães e por mais que Andries tivesse tentado ceder os seus, os pequenos não aceitaram de modo algum.

Seu pensamento voou para a mansão rica de mais cedo e, quando deu por si, estava parado na frente da mesma, o capuz negro tampando seu rosto, observando em silêncio algum movimento na casa.
Andries sabia que a casa ainda estava sem alarme, ouvira isso mais cedo, e em seu pensamento o que iria fazer não era um crime. Ele só iria pegar o que não fossem sentir falta. A senhora Braisser tinha tanta coisa, ele pensou.

Após pular o muro e atravessar o pequeno jardim frontal, Andries deu a volta na casa e entrou pela cozinha. Esta era ilhada em tons castanhos e verdes nas paredes, portas e chão, com armários em branco.
Andries revirou a bem decorada cozinha, em busca de um dos faqueiros de prata que havia visto mais cedo. Sabia que a mulher tinha uns quantos deles e pegou apenas num deles. Seria o suficiente para alugar um quartinho barato depois que fosse despejado com seus irmãos, e para pagar alguma comida.
Ao pensar em comida, Andries olhou diretamente para a geladeira e seu estômago roncou. Pensou nos irmãos e na ideia de eles acordarem e terem um banquete os esperando.

— Só um pouco de comida. Ninguém vai reparar. Ela tem tanta — comentou para si, abrindo o eletrodoméstico e arregalando os olhos ao ver tanta comida à sua frente.

Sua primeira reação foi pegar no pedaço de bolo que viu e o colocar à boca, esfaimadamente. Num saco que achara, ele colocou todos as embalagens de comida que pôde, mastigou mais um pedaço de bolo e fechou a porta da geladeira, se preparando para sair de casa.

Ele se sentia mal por aquilo, mas seu instinto de sobrevivência falava mais alto, afinal ele era o lobo solitário que tinha de alimentar as suas crias. Seus primeiros passos foram dados em direção à saída, mas pela porta de vidro que dava para o jardim, ele viu o reflexo de um olhar azul penetrante de uma mulher que não era Elise Braisser.
Seu coração bombeou disparado e o medo de que fosse preso e nunca mais visse seus irmãos o nocauteou no peito em um dor insuportável.
Lentamente ele se virou de frente para a mulher, caiu de joelhos no chão, largando as coisas que iria roubar e implorou.

— Por favor não chame a polícia. Eu tenho irmãos pequenos que precisam de mim, eles não têm mais ninguém. Eu não tenho mais ninguém.

Amsterdam [PT-BR] ▬ Versão WattpadWhere stories live. Discover now