Capítulo 28-Sete palmos

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A saliva presa em minha garganta estava difícil de dissuadir. Os dedos dos meus pés estavam retorcidos em retaliação e minha mão estava mais fria do que o cadáver dentro do pequeno caixão. Lágrimas pesadas corriam no meu rosto, mas não eram pelo morto. Eu não o conhecia, apesar da tragédia que envolvia seu estado. Era por todas as últimas 24 horas em que meu mundo havia virado de ponta cabeça e eu não sabia mais distinguir o que era real ou mera ilusão.

Os passos de Jhon e Christopher ficaram mais próximos e suas mãos repousavam no meu ombro como se avisassem, apesar do conforto que tentassem passar, que deveria colocar meus pés de volta ao chão. Eu sei que não sou eu mesma depois disso. Nunca mais seria a mesma menina que saiu para um final de semana escondida dos pais e não voltou.

A brisa gélida cortava a pele que estava exposta pelo meu vestido preto e a gramínea do cemitério tocavam meus tornozelos em uma carícia pesarosa. Os óculos protegiam meus olhos inchados dos raios solares que insistiam em perturbar minha cabeça em uma enxaqueca. E cada vez que insistia em analisar o céu, de um dos dias mais bonito que já presenciei em Virgin River, uma pontada aguda me fazia olhar novamente para o solo desgastado do cemitério municipal, composto pela grama mais verde e pelo solo mais fértil.

Um padre contratado pronunciava algumas palavras em latim, algumas poucas perdidas pelo vento e jogadas floresta à dentro. Estávamos nos limites da cidade cercados por túmulos íngremes e aura sombria, que espreitava sempre que os raios solares eram aplacados por uma nuvem pesada. Um grupo mais à frente, consolava uma mulher desolada pela perda do filho. Sabia pelos lamurios incessantes que insistiam em chocar-se com as orações em latim do padre. Ninguém podia assegurar-me que o filho que eu estava enterrando não era dela? Não desenvolvido completamente pelas circunstâncias. Mas ainda sim, uma vida.

O aperto de Jhon ficava cada vez mais forte enquanto a oração terminava. Quem diria que esses monstros poderiam acreditar em algo mais? Eu não apostaria minhas fichas nisso. Mas contra tudo, Christopher foi quem se ofereceu para chamar um padre da paróquia regional e organizar tudo o que fosse necessário para que meu filho imaginario fosse enterrado. Não mais, pois sabia que havia um corpo ali. Pequeno, tanto quanto, se não mais, que o próprio caixão. Menor que um ante-braço, mas foi capaz de sanar todas as pontas soltas que Christopher insistia em causar.

Outro nó estava se formando em meu estômago por saber que foi Jhon que elaborara toda o enredo que se sucedia após o falso aborto espontâneo. Foi ele que comprou o silêncio de toda a equipe que me assistiu, principalmente a Dra Xang que me lançava olharem furtivos quando estava aos seus cuidados. A mesma que utilizou um tom de veludo mascarado para enganar todos os ouvidos de que, infelizmente, eu não estava mais grávida. Seja com dinheiro ou ameaça, Jhon conseguiu enganar até mesmo Christopher, que chorou ao ver o feto. As lágrimas daquele dia estavam mais pesadas das que hoje molhavam meus olhos. Chorava pela mãe que iria enterrar um caixão vazio, para que minha mentira fosse selada a sete palmos do chão.

O padre terminou seu pequeno ritual espiritual e eu pude soltar a respiração que não deixava meus pulmões desde que saímos daquela Cabana. Os pequenos flash da luz incandescente do hospital invandiam meus olhos novamente, enquanto o barulho incessante das rodas da maca reverberavam pelo piso cerâmica maculado do hospital. Passos apressados  tentavam acompanhar e vozes gritavam no fundo da minha cabeça como uma sinfonia assustadora. Lamentos, gritos e súplicas. Tanto quanto, ameaças, raiva e ódio. O olhar desolado do ruivo. O taciturno de Jhon e o horror estampados nos de Antônio.

Foi suficiente para quase sentir repulsa de mim mesma. Quase.

Estava tão perdida na névoa de pensamentos que não percebi que havíamos passado a pequena lápide com a data atual de 18 anos atrás. Assim como aquela a nossa frente. E algumas dezenas de outras atrás. Repousei uma pequena rosa branca na lápide e observei a grama do morro se movimentar conforme a corrente de vento dançava pelas colinas. Um ritmo cessante e letárgico. Algumas ruas ao lado, Antônio parava ao lado de uma lápide, perto o suficiente para ler sua expressão corporal tensa, mas longe o suficiente para notar a escrita no granito. Até aquele momento não havia percebido que o loiro deixara nossa caravana para ir em busca da sua própria.

Chegaste ao fim dos capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Sep 11, 2023 ⏰

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