O Nerd

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O gosto de ferro já percorria sua boca antes mesmo que tentasse se lembrar de quando foi a última vez em que recebera um abraço caloroso dele. Seu corpo alcançou mais uma vez o chão da cozinha, e por lá desejou se enfiar entre os azulejos preto e branco encardidos, que moldavam o piso.

Provavelmente era só um corte na boca, mas por que raios doía tanto o coração?

Tentou se levantar, apoiando a palma das mãos de encontro as lajotas que já estavam sujas com seu sangue. Sentiu o braço tremer e ouviu os gritos incessantes ao fundo.

Era tudo culpa de uma maldita caixa de cerveja.

Desejou ter ido direto a mercearia da esquina comprá-la após a aula, ao invés de ter perdido tempo na biblioteca da escola estudando para a prova de química.

- Levanta logo desse chão moleque e vá comprar a porra da cerveja! - seu pai ainda insistia, totalmente bêbado.

Fechou os olhos e quem ganhou formato colorido entre a escuridão das pálpebras grudadas foi ela, sua mãe. Agora mais do que nunca estava claro ao garoto o porque ela abandonara a família há quase oito anos atrás.

A culpa ainda sim continuava a ser da caixa de cerveja, com um plus das noites de brigas, agressões e perda de todo o dinheiro restante da família em jogos idiotas de poker.

Fazia frio na manhã em que ela partiu.

Ao acordar a mesa da cozinha estava vazia, sem as panquecas com mel que a loira preparava aos dois filhos. O aroma do cômodo não era de suco de laranja fresco, recém espremido, mas sim de saudades e desespero. Tinha apenas nove anos quando ela decidiu fugir largando tudo para trás, inclusive ele. Soube pelo irmão, ao topar com ela em um shopping de outra cidade, que se casara novamente com um figurão da bolsa de valores e tinha mais um filho, que provavelmente aqueles dois nunca iriam conhecer.

Limpou o sangue que escorria pelo canto da boca e saiu, sem ousar encarar o pai.

A mercearia era perto, então dispensou a bicicleta velha encostada na porta da garagem vazia. Até o carro da mãe havia entrado como pagamento das dívidas da jogatina exacerbada do pai.

Já era quase meia noite e nem sinal do irmão aparecer ou voltar para casa. No caminho se questionava como compraria a cerveja, já que não tinha dinheiro para aquilo. A geladeira deles, por sinal, era quase 100% vazia: jazia uma caixa de leite aqui e alguns ovos ali, porém o espaço era mais ocupado por vento do que de qualquer outra coisa. Pareciam anos que não sabia o que era um bom pedaço de carne ou uma refeição completa, com uma boa sobremesa para fechar a comilança.

Toda essa falta de comida era refletida em seu estado físico; poucos músculos, pele seca e pálida e um sorriso fraco no rosto. Isso fazia com que passasse despercebido entre os corredores do colégio.

Ninguém sabia quem era ele ali... Talvez nem ele mesmo se reconhecesse mais...

Ao parar na porta da loja, viu finalmente seu irmão encrenqueiro lá com a nova má companhia, encostado num carro novo, provavelmente roubado pela dupla. Ainda que tímido, precisava encará-lo:

- Boa noite Gally, você tem algum dinheiro ai? – perguntou.

- E ai trolho? O que faz na rua uma hora dessa? Crianças já deveriam estar na cama faz tempo! – disse rindo e caçoando do menor.

- Como se você fosse tão mais velho que eu... Um ano não muda muita coisa! – se arrependeu de ter enfrentado o irmão na frente do novo amigo.

- Você merecia um outro soco nessa sua cara de bosta – disse rindo – Mas acho que alguém já cuidou disso né? Pra que quer dinheiro? – ele insistiu.

- Papai pediu para comprar cerveja e se eu chegar em casa sem, estarei encrencado.

- Boa sorte então Newt! – disse Gally virando as costas para o irmão, entrando no carro suspeito e se mandando dali, largando o coitado na rua com suas dúvidas e medos.

Riu, porque havia sido um completo idiota ao acreditar que seu irmão algum dia iria ajudá-lo com algo. Gally não era mais Gally desde a partida da mãe; sempre revoltado e de mal com a vida, só se metia em confusão e andava em má companhia. Estava no último ano e era péssimo na escola. A única coisa que o loiro alto se destacava era em ignorar e maltratar os outros.

Ao segurar a porta da mercearia, fitou ao longe um dos garotos da sua série entrando em um carro importado, sentando-se do lado do passageiro. Estranhou a cena, já que sabia que o menino popular não pertencia a aquele bairro afastado. Ficou imaginando mil possibilidades, até que aquilo evaporou da sua mente.

- Vai ficar ai mesmo plantado na porta da loja Newt? – disse Brenda, sua única amiga desde que se mudara para a escola nova.

- Desculpe Bren...

- Você se desculpa demais por tudo! O que aconteceu com sua boca? – disse já puxando um punhado de gelo do congelador a frente e socando as pedras frias no lábio do amigo.

- Arranjei briga com um cara...

- Você? Arranjando briga Newt? Conta outra! Desembucha, o que aconteceu?

- Não é nada de mais... – ele queria contar para ela.

Ele desejava que Brenda soubesse o porque que a cada dia ele aparecia com um hematoma novo, mas tinha vergonha da sua situação. Brenda era bolsista na escola, assim como ele. No bairro onde moravam poucos eram os privilegiados a ter uma vida digna pela frente. A menina fazia a sua parte; estudava até às 15 horas e entrava no serviço das 19:00 à 01:00 da manhã para ajudar nas despesas da família.

- O que faz aqui fora a essa hora? Veio inspecionar meu trabalho? Você nunca saí!

- Precisava comprar algo para meu pai... mas...

- Você não tem dinheiro. Eu sei. Juro que queria te ajudar Newt, mas se o Sr. Stone souber que ando vendendo fiado, serei demitida.

- Não se preocupe Bren. Não era nada urgente. Além do mais amanhã terei uma entrevista para uma vaga na biblioteca do bairro e logo este problema de falta de grana estará parcialmente resolvido.

O sino da porta ecoou pelo lugar, chamando a atenção dos dois. Gally retornara ao local com mais umas seis pessoas totalmente estranhas e mal encaradas.

- Acho melhor eu ir nessa amiga. Até amanhã. – despediu-se as pressas e tratou de sair rápido dali.

Ele sabia que aquilo cheirava confusão, então optou por levar mais uma surra quando chegasse de mãos vazias em casa, do que ter que encarar as escolhas erradas do irmão. Após andar cinco minutos a pé pela noite fria e escura, ouviu seu nome vindo de trás.

- Newt, espere!

Era Gally gritando pelo caçula, segurando uma caixa de cerveja debaixo do braço. Entregou o pacote ao irmão e entrou rapidamente em um carro preto, sumindo da rua em segundos, como se estivessem fugindo de algo ou alguém.

Admitiu a si mesmo de que estava errado; Gally poderia ser uma pessoa boa afinal. Sentiu paz no coração a caminhou aliviado de volta para casa pelo fato do irmão ter lhe poupado talvez um braço quebrado ou algo pior, até sentir as sirenes da polícia alcançarem seus ouvidos e estancarem o carro a dez metros de onde ele estava, mirando as armas em sua direção.

Ainda assustado pela cena, largou a caixa no chão e levantou as mãos em direção a cabeça, lamentando a ingenuidade que lhe tomara por alguns segundos.

- Gally! – exclamou já deixando uma lágrima rolar pelo seu rosto.

WallFlowers - Newtmas FicWhere stories live. Discover now