PARTE II - Capítulo 24

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2007

JONNY

Ter ficado com os roadies e Emília bebendo no bar do hotel até aquele horário não havia sido a melhor das ideias, João precisava admitir. Na ponta dos pés, para não acordar um Paulo que havia subido para o quarto sem ao menos jantar, após o último show da turnê do novo álbum nos Estados Unidos, tomou um banho na tentativa de fazer a cabeça parar de girar. E, apesar de os ombros estarem doloridos após tantos dias na bateria, não foi para a cama após se enfiar em um samba-canção cuja limpeza já devia ter a validade vencida. Estava se prometendo que ligaria para a lavanderia do primeiro hotel quando desembarcasse no Canadá para alguns dias de descanso.

Talvez fosse por um pensamento semelhante a este que não tivesse vontade de se deitar, mesmo que a visão estivesse turva por culpa do álcool. Normalmente isso ajudaria seu sono, mas tinha a impressão de que seria diferente naquela noite. Talvez só ficasse enjoado com seu remexer na cama. Ninguém havia dito uma palavra com relação ao assunto, mas João sabia que as coisas não estavam boas para os colegas de banda. Queria acreditar que a irmã só estava comemorando o sucesso de mais uma parte da turnê, que havia começado no Brasil daquela vez, ao encher a cara daquele jeito. E que o melhor amigo estava cansado de ser assediado por todo adolescente que encontrava pelo caminho.

Algo dentro dele sabia que não era nada disso. Emília estava se preparando para dar de cara com o dono da Pryor Records outra vez. E ele conhecia a irmã. Não havia ninguém que conseguisse segurá-la, puxá-la para baixo por tempo demais, impedir que continuasse a fazer o que precisava fazer, fosse trabalhar ou se juntar aos amigos em um bar. Mas sabia também que, lá no fundo, onde ninguém podia alcançar – talvez nem ela própria –, o gigantesco prazo que Emília se dava para enterrar alguém ainda não tinha vencido. E, orgulhosa que era, ela se recusaria a deixar isso às vistas, então precisava se acertar consigo mesma antes de pisar novamente em Vancouver.

Estava se acomodando na escrivaninha em frente ao notebook quando escutou Paulo se movimentar às suas costas. Olhou por cima do ombro – o quarto agora iluminado pela luz azulada da tela do notebook – a tempo de vê-lo de olhos abertos. E poderia ter pedido desculpas, dizer que só iria usar a internet do hotel por alguns minutos, assegurar que ele poderia voltar a dormir, mas não fez nada disso. Porque soube que Paulo não estava dormindo, havia apenas revirado na cama por todas aquelas últimas horas. Voltou-se de frente ao teclado apenas, abrindo o navegador ao confirmar que o cabo de rede já estava conectado.

— Nervoso? — perguntou, mesmo que não soubesse o motivo. Bem, sabia por que estava questionando, apenas tinha certeza de que ele não responderia. Nunca conversavam sobre coisas como aquela, embora, de alguma forma, sempre soubessem o que acontecia um com o outro.

— Nervoso pra quê?

João riu pelo nariz. Poderia também ter engolido a continuação, deixado o assunto para trás, mas novamente decidiu fazer o contrário. Enquanto digitava o nome da banda no site de buscas, continuou:

— Quer enganar quem, Paulo? Te conheço há quanto tempo?

— Não o suficiente.

A resposta o pegou de surpresa, o colocou para rir. Idiota, pensou sozinho. Teria verbalizado sem cerimônia se não estivesse confuso com a imagem na tela do computador. Ela ainda mal havia feito sentido em sua cabeça, mas ele já sabia que tinha algo errado. Havia clicado no primeiro link oferecido – que desde seus tempos de banda independente sempre tinha sido o Bee Are Canadá –, mas ao que tudo aparentava não estava dentro do site esperado.

Retornou à tela anterior apenas para ter uma confirmação, e um suspiro desanimado lhe escapou pela boca. Desde que Lisa havia lhes mandado aquela mensagem quase um ano atrás, no final de 2006, ele sabia que o site não seria mais o mesmo. O afastamento de Nate dera uma boa diminuída na quantidade de postagens por mais de um ano, mas o contato de Lisa o fizera acreditar que o principal portal sobre a banda terminaria de afundar. Com a faculdade e o novo trabalho, não daria conta de cuidar dele do modo que deveria, dissera ela, mas havia lhes apresentado a um trio de novos administradores.

Os garotos entravam em contato com frequência, portanto João precisava admitir que parte da falência do site era culpa sua, e de Paulo, e de Emília. Era esquisito conversar com aqueles fãs. Não era segredo para nenhum deles que Lisa e Nate estavam em surto quando começaram a se falar ou se conheceram pessoalmente, mas a dupla até que conseguia ser discreta com relação a isso. Também eram agradáveis a ponto de, bem, Paulo ter se apaixonado por um deles e ter se culpado por anos por uma série de coisas: desde ter se apaixonado por um garoto – embora João achasse que o amigo tinha tomado a única atitude correta possível ao se refrear ao descobrir a idade dele, então não precisava se punir tanto por isso – até por tê-lo magoado sem nunca ter podido se explicar.

Não era assim com os meninos novos. Nunca seria assim. João não se via sentado com eles no sofá da casa de alguém, comendo pizza e lhes apresentando bebidas brasileiras. Talvez fosse por isso que o site deles houvesse caído para o segundo lugar na lista de mais relevantes na pesquisa pelo nome da banda.

Em primeiro, agora, havia aquele outro blog muito bem feito, se pedissem sua opinião. BeeAreOrNot.Ca. João nunca iria entender o que tanto tinha entre eles e o Canadá, mas sua base de fãs nunca havia diminuído por lá, mesmo que houvesse crescido exponencialmente em todos os outros lugares. Lá estavam os canadenses confirmando que ainda eram o país que mais gostava de escrever sobre eles.

Foi o layout da página que o fez ficar pelos primeiros minutos ao clicar novamente nela. As cores preta e amarela, que costumavam estar em todo o merchan da banda, eram carregadas em tons escuros ali, variando para o cinza e o mostarda. A aparência pesada o guiou para um tipo de carimbo no lado direito da página: Você consegue adivinhar?, a inscrição perguntava. E então se sentiu fisgado. Ajeitou-se na cadeira e rolou os primeiros posts para baixo.

Eram frases curtas, como manchetes de um jornal. Abaixo delas, uma ferramenta de votação com dois botões: Bee Are e Not. João leu a última delas sobre Emília ter se metido em encrenca com bombeiros e saído encharcada de um acidente. Riu em silêncio da história, mas sabia que não era verdade, então clicou em Not. Era o que a maioria havia votado quando o resultado da enquete apareceu, sem indicar a resposta correta, o que devia tirar uma grande quantidade de fãs dali direto para outras abas de pesquisa. O número de votos, na casa das centenas de milhares, o fez segurar um assobio para não incomodar Paulo. Era uma maneira inteligente de ganhar cliques, precisava admitir.

Rolou um pouco mais a tela para baixo, apenas para descobrir que quase todo o restante era verdade. Não, João não havia levado um tapa de um blogueiro durante uma entrevista por motivos pessoais. Mas, um mês antes, o site havia lembrado do tombo que Paulo tomara – de cima do palco diretamente para dentro do fosso, o melhor momento de toda a sua carreira – e que agora estava em vídeo por todos os cantos. Um mês, uau, pensou consigo mesmo. O tempo parecia estar voando. Poderia jurar que aquilo havia acontecido uma ou duas semanas atrás.

Foi quando se afundou em postagens mais antigas que decidiu ser hora de fechar a página. O nível de detalhes era assustador, até mesmo em coisas que haviam acontecido quando ainda estavam na escola. Era como se a pessoa por trás das notícias soubesse de tudo. Coisas tão cabeludas que, como constatou ao clicar em um Bee Are para confirmar que era verdade, a maioria dos fãs achava ter bom senso ao votar em Not. Fazia alguns anos que ele sabia que não era saudável ficar pensando nos métodos que alguém usava para conseguir aquele tipo de informações, então fez o de sempre: deixou para lá, embora ainda estivesse com as ideias rodando na cabeça enquanto desligava o computador e se arrastava até a cama.

Deitou com os olhos fixos no teto, agora parecendo um pouco mais escuro do que deveria estar, já que estava acostumado com a iluminação forte da tela que encarara pelos últimos minutos. Respirou fundo algumas vezes e, quando estava pronto para tentar se deixar levar pelo efeito tranquilizante da bebida, escutou um murmúrio.

— Você acha que a gente vai ver eles? Digo... Eles não fazem mais parte do site.

Seu corpo remexeu no susto. Quase havia esquecido que Paulo estava acordado. Mas, enquanto o alarme se dissipava e dava espaço para que pensasse no que ele havia perguntado, um sorriso foi se formando em sua boca. Começou como uma risadinha, que não conseguiu evitar que aumentasse aos poucos. Paulo era ridiculamente previsível. Quando percebeu, estava gargalhando. E outro resmungo alcançou seus ouvidos, enquanto o amigo se virava de costas para ele na cama ao lado:

— Ah, vai dormir, João!

Tá brincandoWhere stories live. Discover now