Capítulo 3

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JONNY

Os equipamentos ainda estavam espalhados pelo quarto quando João se sentou na cadeira da escrivaninha onde ficava seu computador. O número crescente de mensagens em inglês que vinha respondendo no MySpace da banda era inversamente proporcional à quantidade de gente que os conhecia nos bares que vinham tocando pelo último mês. O mesmo couvert artístico que mal pagava o deslocamento até o lugar; as mesmas caretas de quem preferia uma banda de pagode ou até uma gravação qualquer, sem ter que pagar para ouvir música emo. Ele odiava esse termo.

Como se não fosse decepcionante por si só, havia a pergunta que sempre precisava responder quando dizia ter uma banda: e com o que você trabalha?

Tinha vontade de quebrar alguma coisa toda vez que ouvia a imbecilidade, mas infelizmente as pessoas estavam certas naquela situação. Todos eles tinham um trabalho diurno, porque as ações com música não davam conta de pagar os boletos, ainda que dividissem a maior parte deles e morassem amontoados naquele apartamento minúsculo.

Enquanto dava uma olhada nos sites de notícias internacionais e nas gravadoras brasileiras – a maioria das quais já havia enfurnado seu EP em um depósito para nunca mais procurá-lo –, selecionou uma das playlists que havia montado com os artistas preferidos e colocou no modo aleatório, porque decorar a ordem das músicas era sempre frustrante. A voz de Frejat tomou conta do quarto enquanto ele aumentava levemente o volume de modo a preencher o ambiente e tirá-lo do mau humor, sem perturbar a irmã do outro lado da parede.

Até porque suas playlists não eram muito bem-vindas por nenhum dos outros integrantes da Bee Are. Paulo costumava chamá-lo de pedante, ouvindo de Titãs a Detonautas enquanto fazia músicas como as do último CD do Green Day. Ele não concordava por inteiro. Tinha certeza de que o som da Bee Are não era parecido com nada que estivesse sendo lançado lá fora – ou era apenas seu enorme ego tentando convencê-lo de que era especial – e creditava isso à imensa quantidade de músicas brasileiras que tinha escutado a vida toda. Emília era uma grande hipócrita de reclamar, na verdade, quando a influência viera de dentro de casa.

Alguns dias atrás, Nate enviara uma mensagem dizendo que estavam de mãos vazias e atadas agora que todas as cópias dos EPs haviam sido distribuídas entre as gravadoras de Vancouver. Tinha conseguido ler o conteúdo sem abri-la, justamente por não saber como responder. Queria soar agradecido – era o mínimo que poderia fazer, até porque estava –, mas aquela frustração de não ter sido contatado até agora por nenhuma delas não podia ser descontada na cabeça do garoto que tinha dedicado tanto tempo para ajudá-los. Então era bom que aguardasse mais alguns dias até digerir sozinho mais duas dezenas de rejeições.

Segredos acabou já quase dentro de uma música do Legião Urbana quando estava acessando o e-mail profissional. Havia enviado algumas mensagens ao longo da semana para casas de shows que procuravam atos de abertura ou inscritos para batalhas de bandas, mas até agora não tivera resposta. Foi tirado dos pensamentos quando a voz de Renato Russo deu a primeira frase de Hoje a noite não tem luar e a canção logo recomeçou atrasada por detrás das paredes. Era uma mistura esquisita de duas versões diferentes dela, o que o fez baixar o volume de suas caixas de som para tentar descobrir por que Emília estava brigando com ele para ouvir a mesma música.

A voz melosa e enjoada que veio em seguida, alta a ponto de até mesmo os vizinhos poderem escutar, o fez olhar para o teto. Só não era alta o bastante para abafar os risinhos de Emília e Paulo do lado de lá da porta. Ele conseguia enxergá-los passando horas e mais horas, na internet discada, baixando aquela gravação do Felipe Dylon e a guardando por semanas até que a música aparecesse em sua playlist no momento certo para uma piada. Queria rir, mas não deu o braço a torcer enquanto gritava para que eles ouvissem de longe:

— Cês são muito cu!

Recebeu um par de gargalhadas em resposta enquanto a música parava de súbito. Aumentou de novo a sua e começou a selecionar os e-mails promocionais, então percebeu que um deles, embora em inglês, não era um spam. Em vez de seguir com a exclusão, clicou sobre a mensagem. Ainda não estava entendendo quem era Joey quando passou os olhos por cima do texto e gritou coisas que nem teve certeza do que eram para chamar os outros dois. Gritou, gritou e gritou, até que um deles abriu a porta, com os olhos arregalados.

— Uma gravadora! Uma gravadora! — Foi a primeira sequência de palavras que conseguiu colocar em ordem. Até porque o restante do conteúdo da mensagem ainda nem havia feito sentido. Brasil, reunião, voo. Sempre havia feito o papel de empresário da banda e, agora, precisava que alguém lesse direito para ele.

Não teve certeza de quando se ergueu da cadeira e Emília tomou seu lugar, dizendo coisas que ele não tinha ideia do que significavam. Quando teve um novo flash de visão do quarto, estava tomado por um abraço de Paulo, a um passo de distância da cama. Foi nela que desmontou em seguida para respirar, como se no meio do caminho tivesse ficado difícil pensar e fazer isso ao mesmo tempo.

— Qual é o nome do garoto? — Conseguiu discernir a voz da irmã pela primeira vez. — Ele disse alguma coisa?

João chacoalhou a cabeça para a pergunta, ainda que viesse abafada como se estivesse do outro lado de sua bolha de confusão. Não soube se estava conseguindo verbalizar a resposta quando arriscou:

— Nate. Nate Leblanc.

— Ele mandou mensagem, disse que entregou todos os CDs — ela contava enquanto digitava algo no teclado, de modo frenético, com os dedos pesados fazendo barulho demais.

Ele teria reclamado da falta de cuidado em qualquer outro momento. Agora, só se sentia enjoado, com o coração batendo sem controle enquanto ouvia, ao que parecia ser uma grande distância, a risada desacreditada de Paulo. O vocalista tinha as mãos na cabeça e andava para lá e para cá com um sorriso idiota no rosto, às vezes se debruçava sobre Emília:

— Você agradeceu? Não, não diz isso. E se não rolar? Não fala nada. — Escutou o amigo comentando.

Não tinha ideia do que estava acontecendo, mas deixou que eles resolvessem. Os dedos das mãos estavam dormentes e seu rosto tombou sozinho para se encaixar entre os joelhos em busca de ar. Os gritos de Emília ficavam mais histéricos a cada minuto.

Quando um novo flash passou pela frente de seus olhos e João se localizou outra vez, já conseguia encontrar motivos para sua confusão. Estavam os três, bêbados, jogados no sofá da sala.

Tá brincandoWhere stories live. Discover now