Ele permanece aqui

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  Capítulo 02

 Quando se vai, fico com esse pensamento, Felipe vir aqui é olhar para mim e lembrar do seu irmão, como ele mesmo diz, Simas está estampado na minha solidão, nas minhas vestimentas, nos meus livros e até mesmo no Joseph que está tão velho que temo perde-lo também. O único pedacinho que tenho do Simas, é esse gato velho, nosso gato que tem a idade do nosso amor, Joseph sentiu tanto a partida de Simas quanto eu. Pego a garrafa de bebida e o animal nos braços ouvindo seu miado protestante, subo as escadas com calma, cada luz vai se apagando conforme minha presença vai se indo. Ando até a última porta e abro, o quarto escuro já não tem nenhum resquício do meu perfume de mais cedo, o seu perfume. Confesso que não aceitei sua ida, uso nosso quarto, seu perfume, escrevo sobre nós, falo sobre ele e penso todos os dias, crio sonhos na minha cabeça que viram pesadelos pela noite, vivo pequenas histórias sozinha nessa casa, histórias de tudo o que poderíamos estar vivendo agora. Aonde nós estaríamos hoje? Em que lugar do mundo? Fazendo o que? Sento a cama, ali tem sua foto, uma que Felipe me deu, o travesseiro tem seu perfume, por anos venho alimentando isso, seu lado do closet ainda está cheio, o meu repete suas roupas num tom feminino, os pesadelos não me deixam esquecer sua voz, nem mesmo seu rosto. Tenho tudo o que era dele, tudo. O gato, as roupas - até mesmo as roupas que estava usando no seu último dia de vida - o perfume da mesma marca, não o mesmo frasco, o antigo ainda está pela metade junto das suas joias, ao lado da cabeceira, seu travesseiro, nunca tive coragem de pedir para lavar, não tem seu cheiro, mas era dele, nunca deixei o luto. Julgo que, como dizem, o luto maior não é na hora da partida e sim a falta que faz depois dela, foram cinco anos, pra mim nunca foi tanto assim e até superar, será muito.

  Tiro peça por peça da roupa, cada camada de tecido que sai de mim o frio se aproxima mais, jogo a roupa completa para lá e as botas, minha pele se arrepia quando meus dedos entram em contato com o chão, a única luz do quarto é a luz da noite, ligo o abajur, uma luz amarelada deixa o quarto com cantos de contrate, respiro fundo tirando a maquiagem em frente ao espelho vendo o gato na cama a se lamber, deixo que meus ombros caiam e meu corpo relaxe, meus mamilos estão enrijecidos pelo frio, o aquecedor não está aquecendo esse quarto sem vida, me levanto e me jogo na cama, Joseph assustado desceu do colchão para o tapete, olhando o teto sinto meu corpo arrepiar, posso ficar aqui até morrer congelada, uma boa opção, seria egoísmo com o próprio Joseph, falando nele, sinto suas patas geladas subirem na minha barriga, senta ali, ereto e com olhar de autoridade para os flocos de neve que caem lá fora, fico poucos segundos acariciando ele e de repente me pego a acariciar a mim mesma imaginando as mãos do meu homem em pontos que ele tocava, fecho meus olhos sentindo minha pele arrepiar, o silêncio, do quarto, da rua, do mundo, silêncio total. Abro os olhos e observo a luz da abajur, olho tanto que quando resolvo me banhar pontos negros estão na minha visão, tiro o gato de mim, deixando ele ao lado e vou em direção ao banheiro. Fico embaixo do chuveiro por tanto tempo que meus dedos ficam enrugados, a pele queimando pela água quente, me cubro com o roupão e abro a porta olhando para Joseph que mia sentado no tapete, o ignoro querendo por logo uma roupa. Visto um pijama e me sento na cama com o notebook a mão, olhando para a tela suspiro, o que será que vai ser registrado hoje? Depois de minutos e minutos olhando a página em branco escrevo:

  Naquele dia nem mesmo sabia o que aconteceria, nunca tive muito contato com o mundo, presa naquela casa com mais algumas mulheres, onde estavam meus pais biológicos? Por muito tempo sonhei com a imagem deles a vir me buscar e dizer que me deixar na porta daquela mulher, não foi intenção deles, mas nunca aconteceu. Não sabia o porquê daquele homem estar ali, negociando na frente da minha mãe adotiva, ela o olhava com tanto amor, quem era ele? E por que estava dando dinheiro para ela? Que poder ele tinha para por medo naquele homem que não nos quis vender leite? O por que dele me olhar tanto assim; eu tinha apenas 17 anos naquela época, quando fui embora com ele já tinha vinte, namoramos por três anos escondidos até nos casamos, a família dele nunca gostou de mim, mas ele não ligava para isso. Aprendi muitas coisas com ele, me ensinou e me deu liberdade de ter o que eu nunca tive, a vida dele, a vida na máfia, nos deu muito e nos tirou muito, perdi minha família adotiva, e ele também perdeu a mulher que ele amava mais que tudo, nunca soube realmente a relação dele e da minha mãe adotiva, mas sabia do amor que ele tinha por ela. Muitas coisas ficaram sem respostas depois da sua partida.

  Paro de escrever, tenho muitas coisas a relatar sobre nós, há vários documentos salvos de notas que tomei do nosso tempo junto, não pretendo publicar, mas seria um bom livro. Talvez um dia publique e o mundo, ou só toda Irlanda se lembrará novamente quem foi Simas O'Sullivan, dono da Taitneam Company, a empresa que é dona da maioria dos edifícios desse país. Talvez um dia, não hoje, não amanhã e nem esse ano, a nossa história pode sim se transformar num belo romance, isso iria expor a ele, mas não quer dizer também que sou obrigada a usar nossos nomes. É nós, mas ninguém irá saber só nós. Respiro fundo colocando o notebook no móvel ao lado da cama. Chamo Joseph que vem preguiçosamente para perto de mim, aos poucos adormeço e aos poucos o quarto vai morrendo.

  'bip, bip, bip', meus olhos se abrem, sinto um calor perto do meu peito, parece abraçar meu corpo por completo, sorrio com esse afeto, me viro para o lado oposto e o que encontro é frio, o lado da cama intacto, meu corpo não acostumou com o lugar todo para si, suspiro, o calor foi apenas Joseph, meu pobre e amoroso gato, se espreguiça junto a mim e assim que levanto faz o mesmo saindo do quarto. Arrumo meus cabelos e faço minha higiene matinal, o dia tem sol, consequentemente está mais frio. Visto primeiro uma meia calça cor da pele, uma legging, uma calça térmica e uma calça de alfaiataria bege, blusa térmica e blusa branca social por dentro e um colete de crochê azul-claro e marrom, um coat também marrom por cima, fechando-o e colocando botas curtas sem salto. Desço as escadas e vou à cozinha, alimento o gato e coloco água para ferver, voltando à sala vou ao escritório, arrumo a maleta com novos documentos e plantas de prédios a serem entregues aos nossos arquitetos e engenheiros, quando esse inverno desgraçado acabar, voltará as nossas obras.

  Tomo o café em paz sem perturbação, olho para o dia, sem neve, sol a derreter tudo a nossa volta, mais frio e mais acidentes, deixo o café quente aquecer meu corpo e sinto meu nariz entupido, fungo e levanto, faço um último carinho em Joseph e saio do apartamento descendo até o hall e cumprimento Austin o porteiro, saio e esbarro com um homem.
  — Perdão — olho para ele, olhos cinzentos, cabelos ruivo e alto, já o vi, mas não lembro onde.
  — Tudo bem — logo se afasta, mas fico com o pressentimento que já vi esse homem. Tirando isso da cabeça, me apresso para chegar à empresa, preciso passar essas plantas para o computador e falar com Finn sobre o agendamento das reuniões com os arquitetos e engenheiros para depois desse inverno. Quero uma boa parte desse prédio acabado até o fim deste ano. No total, nove meses para isso.

Dona O'Sullivan - Spin OffWhere stories live. Discover now