XVI - Gerânio.

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O céu negro rugia em estrondosos trovões, que faziam as janelas de vidro da biblioteca vibrarem. Mas Yashiro não se abalava.
Com a cabeça erguida e sua determinação inabalável, seu corpo a contrariava: tremia de frio, já dando sinais de que não aguentaria mais tempo ali.
Mas não desistiria!
— Mais um pouco — O homem de cabelos bicolores resmungou para a pobre Yashiro, que tinha suas perninhas grossas tremendo tanto quanto as vidraças. Ele parecia interessado apenas em aproveitar seu fumo, sequer dando atenção ao resto.
Nene respirou fundo e, em um ato de coragem e resistência, abriu seus olhos e observou aquela imensidão negra. E ela os arregalou, com espanto indescritível estampado em sua face.
Uma criatura gigante, idêntica à uma serpente, se enroscava avidamente ao seu redor, procurando uma brecha no círculo de energia que a sondava. O selo de proteção que fora posto em sua bochecha, pelo infame beijo de Hanako, brilhava, criando uma esfera de luz ao seu redor que impedia o avanço da aparição contra ela.
— Ela se alimenta do seu medo — Tsuchigomori elevou o tom de voz para que ela ouvisse e mastigou a ponta do charuto, mudando-o de posição em sua boca. — Frustração, ódio, medo… Eles se atraem por qualquer tipo de energia negativa. Use o corte que lhe ensinei, será tão rápido quanto imagina.
Nene observou a criatura diabólica, grudando seus olhos nas orbes negras daquele "pseudo-réptil". Ele parecia querer devorá-la apenas com o olhar.
Sua aparência exuberantemente escarlate fazia Yashiro estremecer dos pés à cabeça.
Engoliu em seco e lembrou-se de Sumire; Em como conseguiu acalentar o coração partido dela. Desde o ocorrido, ela não conseguia machucar aparições. Não conseguia machucar ninguém. Talvez tivesse prometido a si mesma e sequer havia percebido.
E, para seu mestre Tsuchigomori, aquilo era algo a se trabalhar. Ele não se importava com o jeito mais empático dela, de fato. Apenas achava entediante o quão demorado e nada prático era. Afinal, sacerdotes poderiam purificar energias negativas da maneira que os conviesse. Tocar as aparições e dividir com elas o peso que carrega a pessoa que as gerou era a forma que ela preferia.
Yashiro se permitiu, também, recordar dos doces momentos que compartilhou com Hanako naquele alvorecer tão sereno e sorriu, sentindo o medo se dissipar de seu âmago.
Naquele momento, salvar era sua única prioridade.
Quem sabe daqui alguns anos ela não pudesse ser tão heróica quanto as protagonistas dos romances que lia? Salvando todos com amor e bondade? Seus netos adorariam escutar suas histórias sobre criaturas fantásticas e como fora árdua a sua trajetória até o dia em que dera paz a Hanako, a lenda mais poderosa de sua cidade. Seria uma esplêndida recordação, não? 
No fundo ela sabia que aquele ser era apenas a reunião dos sentimentos negativos de alguém. Era certo deixar essa pessoa com tais cicatrizes no peito? Por mais que ela cortasse a aparição e a fizesse desaparecer, a pessoa que havia a criado jamais se curaria daquele ressentimento e logo criaria outra aparição no lugar daquela.
Tsuchigomori não fazia sentido! Seu jeito era bem melhor. Ao dividir as angústias com o genitor daquela energia, tal pessoa se sentiria muito melhor e era quase improvável que outra aparição viesse novamente.
Yashiro sorriu docemente, rompendo a barreira luminosa ao estender seu braço e tocar o meio da cabeça fria do réptil. Ele poderia matá-la caso estivesse desprotegida. Pouco se importava com ela e suas intenções, como todos os outros. Eles apenas devoravam-se, procurando crescer, se multiplicar e fazer com que todos os humanos inalem os seus miasmas e criem mais negatividade, para que se alimentem para crescerem cada vez mais.
Ou, pelo menos, Tsuchigomori a ensinou isso. E ela não duvidava.
A criatura se desfez em uma centena de pequenas esferas rosadas que se dissiparam no ar.
Yashiro sentiu uma pontada extremamente dolorida no peito. Apertou seu vestido e procurou oxigênio em uma respiração longa e profunda.
Com os cabelos molhados e as roupas completamente encharcadas, observou seu mestre com êxtase, esperando alguma aprovação da parte dele. Ela tinha ido bem dessa vez! Estava ficando cada vez melhor em dominar suas habilidades como sacerdotisa. Havia tanto que ela não sabia! Estava animada para aprender tudo o que pudesse com alguém que tinha experiência suficiente para ensiná-la, de acordo com Hanako.
— Como nas últimas duas semanas — Ele levantou da cadeira, indicando uma toalha branca na mesa com um aceno de cabeça. —, bom. Todavia, nada prático. No tempo em que você está acariciando uma aparição, outras dez estão esperando na fila. Cortar todas as onze de uma vez é mais rápido.
Nene enxugou seus longos cabelos platinados e fez um biquinho. Tsuchigomori baforou seu fumo e bocejou em resposta.
— Sei que quer "salvar" o número sete, mas não pode ser ingênua e perder a vida por isso — Ele disse, virando-se de costas. Sua voz saiu tão amarga que ela poderia jurar que isso veio de uma experiência pessoal. — É um erro grave demais e você não pode cometê-lo.
Ela apertou a toalha branca nas mãos e baixou a cabeça, observando a cerâmica bem talhada na varanda da biblioteca.
— Sim… — Ela respirou fundo e o olhou, com um sorriso fraco. — Sim. Não vou ser um peso para nenhum de vocês, Sr. Tsuchigomori! Eu prometo me esforçar ao máximo e procurar ser cada vez melhor. Assim Amane será livre, não será?
Tsuchigomori, involuntariamente, mordeu seu charuto ao escutar o nome de Hanako quando vivo. Ele se virou e respirou fundo, baforando uma última vez sua fumaça. Apagou o charuto em um cinzeiro e olhou nos olhos brilhantes de Yashiro, já deduzindo tudo.
— Entendo — Ele acenou positivamente com a cabeça, dando de ombros. — Está apaixonada por ele.
Ela engoliu em seco, ruborizou e desviou seu olhar novamente para a cerâmica.
— É tão óbvio assim? — Prendeu a respiração, sem sequer saber o motivo.
Tsuchigomori passou as mãos por seus cabelos e os tornou completamente negros. Aquela era a forma a qual mostrava-se para humanos, rotineiramente. Respirou fundo, devaneando brevemente. Concluiu seu raciocínio alguns segundos depois.
— Creio que... — Ele se virou e abriu a porta de vidro. — Talvez seja essa uma boa maneira de salvá-lo — E entrou.
[...]
Após passar a tarde com Aoi, velando o falecimento de Sra. Akane, Yashiro caminhava calmamente até a floricultura da cidade. Havia desistido de trabalhar na padaria, por ser um pouco longe, para trabalhar na floricultura, onde não havia muita movimentação e era mais próxima do cemitério. Ali ela poderia exercer seus deveres como sacerdotisa e purificar aparições, ao mesmo tempo em que conseguia sua renda e estudava. Talvez só tivesse tido sorte, pois a dona da floricultura era esposa de seu antigo chefe e a aceitou, digamos… De "bom grado". Misaki Yako era seu nome. Ela era uma mulher incrívelmente linda e tinha um temperamento extremamente forte, mas não chegava a ser algo difícil de se conviver.
— Esse gerânio está quase morto, é melhor jogá-lo. Está enfeiando a loja — Disse para Nene, que terminava de montar uma coroa de flores rosadas. — Uau! Você é ótima com trabalhos manuais, onde aprendeu a fazer esses nózinhos tão delicados?
— Eu costumava fazer muitos como esse quando estava no colégio. Só desenvolvi algumas habilidades, não é tanto assim — Ela coçou a nuca, desconcertada pelo elogio.
Yako percebeu o quão lisonjeada ela havia ficado e tratou de acrescentar:
— Nem me peça um aumento! Esse já é o seu trabalho.
— Não se preocupe. Irei tirar o gerânio agora — Sorriu. Sua chefe era rude em alguns momentos. Mas, no fundo, as duas se davam bem.
Caminhou calmamente até o gerânio. Murcho, não morto.
— Podemos recuperá-lo, Sra. Misaki — Yashiro pegou o vaso e o carregou até os fundos, enchendo o lugar que havia deixado vago com um vaso repleto de belas margaridas.
— Pela fé! Gerânios estão fora da tendência. Hoje em dia ninguém quer flores escuras, garota. Tão fúnebre! Podemos plantar outros milhares, que crescerão muito melhores que esse. Apenas jogue-o.
Nene observou a flor, respirando fundo e caminhando até os fundos da loja. Ali, Sra. Yako cultivava um jardim coberto. Ele não era enorme como a estufa da universidade. Mas, sem dúvidas, não havia lugar mais florido que aquele. Carreiras de astromélias e camélias enfeitavam com glamour a porta de entrada, seguidas de prateleiras com begônias, orquídeas, um fio onde estavam penduradas lótus artificiais e uma outra infinidade de flores. As paredes eram de vidro, o que possibilitava a entrada de raios solares.
"Tudo para garantir que os túmulos ficassem os mais belos possíveis". Ou, era como sua chefe gostava de brincar. Afinal, em nenhum lugar daquela cidade cresciam flores, além do próprio cemitério. Arrancá-las de lá era um ato considerado censurável e inadequado. E ela havia descoberto por experiência própria.
Yashiro deixou o gerânio em um canto e cortou as hastes espinhosas das rosas brancas, aguou os girassóis e subiu até a pequena estufa no sótão. Ali descansavam os botões de rosas vermelhas, as flores de açafrão e todas as outras que "exigiam uma qualidade final maior".
Terminou seus afazeres com carinho, bem no momento em que seu celular tocou.
— Kou? — Ela atendeu o pequeno aparelho e sorriu ao dizer o nome do amigo. — Está tudo bem?
— Preciso de você — Ele grunhiu de dor no outro lado da linha. — Rua do comércio. Preciso mesmo de você, agora!  — E desligou rapidamente.
— Kou! — Tentou chamá-lo, mas ele já havia desligado. Parecia extremamente angustiado.
Apertou o celularzinho ao peito, recolhendo apressadamente os materiais e devolvendo-os aos armários.
Guardou o celular no bolso da saia, descendo do sótão. Logo que terminou a breve caminhada naqueles degraus, um vaso com o gerânio escuro a aguardava no fim da escada. Algo pareceu segurá-la, interrompendo-a de seguir.
Nene pegou o gerânio e o observou. Era estranho ver apenas um gerânio solitário. Geralmente, as pessoas os compravam em um conjunto bem ornamentado.
— Me perdoe por te manter aqui, você está tão triste — Ela sorriu, sentindo o coração derreter pela flor renegada. Sentiu um Déjà vu invadindo seu peito. — Estar em um vaso não é da sua natureza, querido gerânio — Ela acariciou com a maior delicadeza que pôde as pétalas secas. — Você prefere estar em um solo, livre.
Escutou Yako a chamar da loja, anunciando o fim do expediente de forma irritada.
— Vou cuidar de você, até ficar bem bonito. Assim, irei plantá-lo em um lugar onde você poderá viver tão livre quanto deseja — A água que estava jogando era absorvida com ânsia pela terra do vaso e ela não pôde conter um sorriso maternal. O deixou em um canto da estufa, onde os raios de sol eram generosamente depositados.
— Garota! — Yako entrou na estufa, batendo os pés. — Bem que Misaki me disse que era uma distraída! — Ela arregalou os olhos, ao ver as mãos de Yashiro ainda sujas de terra. — Gosta tanto assim de flores?!
— Amo todas elas, Sra. Misaki — Ela sorriu, fazendo Yako engolir em seco. — Mas, no momento, acho que amo uma em especial — Lavou rapidamente suas mãozinhas e as secou com um guardanapo. — Preciso ir! Um amigo está me esperando na rua do comércio. Até amanhã, Sra. Misaki! — Nene desapareceu apressadamente pelo corredor.
— Ama uma em especial? — Yako passou seus infalíveis olhos por todas as prateleiras, encontrando rapidamente o tão "amado de Yashiro".
Jogou um sorriso de canto ao afastar algumas petúnias e encontrar o gerânio que havia pedido para que ela descartasse. Balançou a cabeça negativamente, cruzando os braços.
— Gerânios escuros significam tristeza, garota — Mordeu seus lábios, analisando a flor recém aguada. Ela estava começando a entender a natureza daquela moça distraída.
Uma travessa borboletinha branca entrou pela janela e pousou no gerânio, contrastando-se com ele instantaneamente. Yako a enxotou com a mão, mas ela insistia em voltar.
— Eu já entendi, Yashiro! — Exclamou para a borboletinha, desistindo de afastá-la do gerânio. — Você vai tentar salvá-lo, por mais que ele já esteja praticamente destruído!
A borboletinha permaneceu no gerânio, não se intimidando mais com sua presença.

𝑂 𝑐𝑜𝑛𝑡𝑟𝑎𝑡𝑜 - Hananene fanficOnde histórias criam vida. Descubra agora