XIX - Arremate

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A garoa da madrugada refrescava o rosto do jovem Aoi, que respirava aquele ar gelado com contentamento. Um sorriso mínimo cresceu em seu rosto quando, de relance, seus olhos vislumbraram os cabelos negros de Sumire esvoaçando abaixo da torre na qual estava.

— O que faz acordada? Achei que dormia muito, já que sua pele está sempre impecável — Elevou o tom de voz, para que ela pudesse ouví-lo com clareza.

— Hana está me esperando, sabe? Não é como se alguém pudesse nos ver juntas — Ela corou, sorrindo. Já estou indo. Se cuida, Akane!

— Quem? Eu ou você? — Akane colocou uma mão próxima da orelha, como se procurasse escutar melhor.

— Aoi Akane, não Akane Sumire! — Ela revirou os olhos.

Akane sorriu, se divertindo com a confusão que havia criado na cabeça da amiga. Sumire era extremamente preciosa para ele, uma amizade que possuía desde o berço. Sabia das relações que ela possuía e o preocupava saber que ela se arriscava tanto, à mesma medida que se sentia feliz por finalmente ver que aquele coração tinha motivos para bater.

A observou se distanciar. Seu vestido branco tremeluzia à distância. Parecia refletir sua alma pura.

Era como se quisesse protegê-la para sempre.

— O tempo não para, não volta. Apenas avança. Por isso as tragédias acontecem.

Akane se virou com o susto tomado, pois jurava estar sozinho. Ele tocou seus bolsos. Ao perceber que a chave estava lá, seu coração se descompassou. Era humanamente impossível entrar na torre sem a chave de entrada, não? Ela era consideravelmente alta para que pudessem escalá-la.

Virou-se vagarosamente, preenchendo pouco a pouco seu olhar com a imagem macabra de um homem uniformizado. A estranha diferença entre os uniformes militares e suas vestes eram as cores, que refletiam em seus olhos uma mistura diabólica do tecido negro e o sanguinolento escarlate.

E, para sua infelicidade, ele sabia de quem se tratava.

— O que deseja comigo, demônio? — Akane engoliu em seco as próprias palavras. A quem queria enganar?

Estava com medo.

— Nos encontraremos, garoto — Hanako ergueu a viseira de seu quepe, fazendo com que o distintivo dourado fixado nele brilhasse. — Pessoas como nós nunca morrem.

— O que quer dizer com isso? — Ele recuou um passo; o único que podia. A beirada da torre jazia presente, o alertando que uma queda de vinte metros o mataria, caso Hanako não o fizesse.

E Hanako sorria. Suas pálpebras encobriam seus olhos, dando-lhe uma aparência extremamente bizarra. Akane não sabia o que fazer, não queria morrer.

— A mãe daquela garotinha ofereceu a própria vida... — Hanako empunhou sua faca. — Como pagamento.

Akane arregalou os olhos, sentindo que Hanako havia perfurado cruelmente a sua ferida mais pútrida.

— Tudo para garantir que você estivesse em pedaços, garoto — Ele apontou a lâmina brilhante na direção dos olhos castanhos do Aoi. — Não é empolgante? Ela detalhou como cada pequena parte sua deveria ser fatiada, antes de perfurar o próprio crânio. Aqueles olhos ardiam em labaredas de ódio, antes que suas chamas fossem apagadas.

— Eu não fiz nada — Agora, os olhos de Akane escorriam desespero na forma de lágrimas. — Eu sabia que você estava me assistindo, mesmo antes de eu vir morar nessa torre. Conseguia sentir. Você viu que foi ele! Você esteve me vendo esse tempo todo, Hanako! — Suas lágrimas caíam no concreto abaixo de seus pés. — Eu era pobre e morreria nas ruas, mas ele me salvou. Eu tinha frio e ele me cobria. Quando a fome corroía meu estômago, ele me alimentava…

Houve uma pausa. Os sussurros da brisa carregando as pequenas gotículas de água eram o único som que pôde ser ouvido naquele instante.

— Eu não sabia que a carne que me nutriu era de uma garotinha tão sofrida quanto eu.

Hanako colocou sua mão vazia no bolso, permanecendo com a faca erguida e o olhar fixado em sua vítima.

— Eu não estava ciente de nada — Ele ergueu os braços, como se demonstrasse estar de mãos vazias. — Eu não sabia de nada! — Gritou, com a voz embargada pelo choro. — Você acha que sou um ser tão torpe quanto você, não é?!

— Não — Em uma fração de segundos, a faca de Hanako perfurou um dos pulmões de Akane, provocando uma violenta rajada de sangue provenientes do nariz e boca dele. — Nenhum ser é mais imundo que eu — Seus olhos apáticos, repletos da mais pura essência da morte, observavam-no cair da torre.

A última imagem gravada em vida, nas lembranças de Akane, foi a silhueta de Hanako acima de sua torre, observando-o morrer com uma expressão tão ataraxa quanto a batida enfastiante do grande relógio: o prelúdio do dia para toda a cidade.

E o arremate da sua vida.

𝑂 𝑐𝑜𝑛𝑡𝑟𝑎𝑡𝑜 - Hananene fanficWhere stories live. Discover now