19 - Reino de Peor

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Helena

Escrevemos para papai, um mensageiro levou as cartas, se não houver imprevistos, certamente chegará em três semanas. Avisamos sobre minha estadia aqui em Molavid, contei sobre todo o apoio de Hector e como estou bem instalada. Sei que papai irá surtar ao saber que irei lutar numa guerra de verdade, mas saber o propósito maior que eu tenho em honrar a memória do meu irmão talvez amenize sua dor.

Os treinos são bem puxados, três vezes ao dia. E confesso que estou aprimorado minhas habilidades. 

Já se passaram mais de um mês que estou em Molavid, tenho me dedicado bastante e superado os limites do meu próprio corpo. Breve deve chegar a resposta das cartas que o mensageiro levou a papai. Estou muito ansiosa por notícias de todos. Desejo saber se tenho um sobrinho ou sobrinha, Catherine certamente deu a luz.

Os dias aqui correm depressa, talvez porque finalmente faço o que gosto, ao invés de passar horas me dedicando as notas eruditas, ou aprendendo novos pontos de bordados, passo a maior parte do dia entre lanças, espadas e lutas, aprimorando meu treinamento. Sinto que estou no lugar certo. Sobre James, não tivemos nenhum momento a sós depois daquela noite em seu quarto. Nosso relacionamento é bem restrito ao que diz respeito aos treinamentos. Decidi focar em meu propósito maior que é a guerra, tenho evitado e ele tem feito o mesmo. Assim é melhor, os sentimentos deles estão confusos demais, e agora que ele me permitiu lutar, não desejo misturar as coisas. Porém não tem sido fácil estar tão próxima. James está em meus sonho, várias vezes acordo em meio a noite, aturdida. Sonho com seus beijos, com o calor do seu corpo ao meu. Me lembro do seu cheiro como se fosse parte de mim. Quando ele me olha, mesmo que por um instante, todo meu corpo se desestabiliza, talvez fosse mais fácil se não estivéssemos tão próximos, sempre. 

É noite, estamos acampados em Peor, um reino próximo de Molavid. Esta é minha primeira missão oficial, e vamos invadir a cidade a qualquer momento. Recentemente uma tropa deles atacaram alguns navios de Molavid que traziam cargas valiosas e as roubaram. Nessa guerra, nossa missão é resgatar alguns sobreviventes além de toda mercadoria que foi levada.

Preparamos nossas armas e cavalos, depois de uma repasse do plano oficial, com o Capitão, nos preparamos para nos aproximar dos arredores da cidade. Logo ao longe avistamos algo estranho, Peor não tem muros, e se trata de um pequeno povoado ao norte. De onde estamos, a visão é ampla, há muito fogo espalhado por todo lado, certamente a cidade já havia sido atacada por algum outro exército. James nos ordena a aguardar e envia três homens para expiar. Me sinto ansiosa, e mesmo corajosa, não posso mentir que sinto um tanto tensa, afinal não sei o que irei encontrar lá. Bernard sempre me contou histórias da guerra, sobre o quanto e cruel, vidas se perdendo e cidades destruídas, eu sempre soube que não seria facil. Mas vivenciar isso de perto, me deixa um tanto perturbada. Alguns minutos mais tarde, os espiões retornam com a notícia de que o exército de Naor havia passado por ali. Trouxeram uma flecha específica que comprovava o que diziam. Pela expressão de James, as coisas não estão nada bem, então faço a leitura labial de um deles dizendo um tanto assombrado:

"Não sobrou nada com vida, dizimaram Peor e levaram tudo."

Quando James dá a ordem para seguirmos, noto que todos estão bastante apreensivos, fico imaginando se há alguma possibilidade de encontrarmos com os soldados de Tronte, o exército de Naor ainda pode estar por aqui, talvez até mesmo nos vigiando, e tal possibilidade ressuscita em mim um sentimento que vem me acompanhando desde que saí de Village, vingança, e logo toda insegurança se vai, dando lugar a uma enorme vontade de acabar com eles. 

Descemos as montanhas a pé, tudo está bastante escuro em volta, a não ser pelo clarão do fogo vindo da cidade a poucos metros. Ao pisar em Peor começo a entender o espanto dos espiões, a cena que vemos é uma das piores que já assisti em toda minha vida. Há corpos pela cidade e muitos deles tem a cabeça arrancada, demonstrando o nível de crueldade. Como já haviam relatado, não restou nada, nem casas, nem animais, tudo havia sido queimado ou destruído. Vários corpos espalhados pelas vielas, de soldados Peoranos, e até mesmo moradores que haviam tentado defender seu povo, suas famílias, meros civis. Abrimos a porta de uma das casas e de repente me choco com o que vejo, os corpos de uma família inteira estraçalhados pelo chão, entre eles haviam crianças. Meu coração se estremece e não consigo me mover do lugar por um instante, não sou eu apenas a me sentir comovida, percebo que James está nitidamente mexido. Ele dá algumas ordens para que alguns homens rodeiem a cidade e vejam o que sobrou, mas acho difícil ter sobrado alguma coisa. E logo há mais relatos de crianças e mulheres mortas da mesma forma.

Ainda estou petrificada digerindo tal experiência, várias lembranças dos momentos em que Bernard retornava da guerra tão abalado, veem em minha mente. Meu irmão sempre me descreveu com riquezas de detalhes, porém, nunca havia ouvido relatar sobre algo parecido com o que vejo agora.

De repente ouço uma voz feminina, a única ali, além de mim, ela é um tanto arrogante ao murmurar próximo ao meu ouvido:

— Isso é uma guerra de verdade! Não esperava por isso não é? Seja bem vinda a realidade bonequinha, ainda dá tempo de voltar pra casa — Harley diz enquanto se vira e sai sem me dar nenhuma oportunidade de falar.

Mas também não importa, eu jamais conseguiria dizer qualquer coisa. A guerra é cruel, mas precisa ser justa, e matar crianças e mulheres não deveria fazer parte disso. Por isso preciso respirar fundo se realmente desejo continuar com isso.

— Deixa ela em paz, garota! — ouço a voz de Melin nas minhas costas.

Mas também não consigo vê-lo, ainda estou paralisada no mesmo lugar sem me mexer. Então desta vez é voz de James que ouço.

— Está tudo bem, Helena? 

Desvio o olhar dos garotinhos no chão e da mulher próxima deles que provavelmente é sua mãe e tentou protegê-los. 

— S-im — falo quase sem forças.

Não sei bem se devia ser sincera.

Uma ânsia de enjoo me invade e me afasto rapidamente, quando noto estou vomitando. Tudo que eu ingeri durante o dia sai pela boca, acho que estou gélida também, tudo isso me deixou mexida de alguma forma.

James se aproxima.

— Isso aqui não é pra você Helena, o exército de Naor é cruel. E isso daqui de trata apenas de um aviso. — sua voz soa preocupado. — Eu te disse que a guerra não era pra você!

Quando finalmente termino de colocar pra fora tudo que tenho no meu estômago, respiro fundo e me viro para James falando com voz firme:

— Isso aqui, James  — falo olhando em seus olhos com toda certeza que tenho. — é a prova de que eu desejo mais do que tudo enfrentar todos eles! E se quer saber, não estou com medo, o único sentimento que me preenche é o de justiça. Mas não me peça pra não me comover ao ver crianças mortas de forma tão cruel, eles eram inocentes.

James respira fundo e me olha com ternura, acho que compreende meus motivos e me conhece bem para saber que tenho coragem o suficiente para não temer o exército de Naor. Mas também sabe que há humanidade em mim e compaixão e de certa forma sei que há nele também, posso ver claramente em seus olhos.

Juntamos todos os corpos e colocamos fogo, depois retornamos para Molavid, não havia mais nada o que fazer por ali.

Um Coração Valente (COMPLETO)🗡️🛡️❤️Where stories live. Discover now