octō

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O sentimento de que a vida eclesiástica não é para si ele sido mais recorrente do que Harry gostaria que fosse.

Apesar de tentar não lhe dar atenção, as noites alongadas pelo sono que tarda em acolhê-lo tornam impossível ignorar  a sensação que pulsa com um pouco mais de força dia após dia.

Uma indagação desponta e, acompanhada dela, pensamentos se expandem como uma teia de aranha que, sem pressa alguma, acresce um novo e delicado fio à rede promissora.

Harry tem mesmo a vocação?

A desconfiança de que o Reverendo Julian se enganou não é inédita, Harry chegou a cogitar isso antes mesmo de começar o seminário. Mas o pior é a outra cisma que surge a partir desta. A de que foi o único enganado, e de propósito.

De fato, quando mais novo ele realmente acreditou que tinha alma de padre e tudo mais,  mas só porque era próximo de um padre e só porque não tinha interesse sexual nenhum.

Gostava de pensar assim, era justificativa nobre que explicava porque ele era do jeito que era.

Porém, sendo franco, o sentimento nunca foi muito sólido... nem muito profundo... no fim, assemelhava-se bastante com um pires de porcelana pintado a mão, lindo mas frágil.

Tanto que a convicção puritana se espatifou no instante em que correspondeu o beijo que o levou à perda da virgindade. 

Foi uma mudança abrupta. Se num dia ele mal tinha ereção, noutro só acordava de pau duro. Se num dia não se tocava por falta de vontade, noutro tinha pavor, e certo nojo, do próprio membro. Se antes sexo o deseinteressava, agora causava-lhe uma apreensão dos infernos.

A santidade revelou-se para o rapaz como uma faceta que, à menor, cedeu e se estilhaçou em mil flocos leitosos.

Naquela madrugada, quando regressou cambaleante para o quarto onde a avó dormia na cama e a irmã e ele num colchão inflável no chão, zonzo e violado e ainda ofegante e enrubescido, o futuro seminarista experimentou todos aqueles fragmentos pontiagudos soltos dentro de si, o ferindo, o angustiando.

Como os pontos de dores não davam sinal de que algum dia aliviariam, Harry se viu desesperado para vomitar cada caco de porcelana para fora. Mas como? Enfiar o dedo na garganta e cutucar até expelir o que podia num vômito não era garantia de que todos fossem embora. Quem sabe, só uma cirurgia de alto nível resolberia - mas quem se submeteria a abrir e suturar mil fendas em sua pele?

Harry certamente não sentiu menos que um condenado à prisão perpétua… mesmo porque se não buscasse logo sua rendição iria, sim, para a pior prisão perpétua que se podia imagina, no mármore ardente do inferno.

Por Deus, se essa era a vida eterna que o aguardava, ele entraria para a ciência e não descansaria até ter a receita para a imortalidade em mãos.

Dias aflitos foram aqueles entre a madrugada de vinte e seis de dezembro e a manhã na qual o garoto foi à paróquia, em trinta de dezembro, desesperado pelo conforto e pelo perdão que somente o Reverendo Julian era capaz de lhe propiciar.

Voz embargada, vergonha latejando nas faces, diversas pausas para respirar e desembolar as frases que congestionavam-se na língua. Quando enfim se calou, esperou se ver livre da angústia. No entanto, assim que alinhou os olhos com o do homem se deparou com o traçado perturbado de suas linhas de expressão e descobriu que a absolvição não seria fácil quando pensou.

Se por um momento Harry se iludiu achando que poderia se restabelecer após o tropeço, desde então não tem mais certeza - sobretudo após os recentes eventos. Talvez aquela única falha tenha sido o suficiente para condená-lo ao fundo de um abismo obscuro para sempre.

immaculate sin of the lovers • L.S.Onde as histórias ganham vida. Descobre agora