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As contas do Santo Rosário deslizam por entre os dedos com delicadeza. Esferas amadeiradas e maciças. De toque gentil. Curiosamente mais pesadas quando tomadas nas mãos do que quando estão no pescoço, onde pendem o dia inteiro.

O artefato é de material escuro e fosco e sobre o crucifixo de madeira há, banhada em prata, uma minúscula imagem de Cristo Crucificado cravejada. O entremeio, jóia que liga a Cruz e as três contas - que ascendem em fé, esperança e caridade - ao giro das preces, também prateada, é uma medalha de míseros centímetros que exibe a silhueta do manto triangular da Santíssima Mãe.

Emblemática Virgem Maria, santidade que se dilui em diversos nomes e títulos.

É como o sumo de uma fruta, que pode ser transformado em suco, sobremesa e sorvetes, prato principal em alguns casos ou, ainda, pode conceder a sua essência para óleos concentrados, produtos de beleza, perfumaria e coisas do tipo. Mas, sobretudo, é uma seiva que jamais perde a sua principal característica, aquela que a torna única, especial, distinta de todas as outras.

A bondade. A pureza. A beleza jovial. O coração maternal. O sofrimento.

Certa vez, uns três ou quatro anos atrás, Harry questionou o Reverendo Julian sobre quem seria Nossa Senhora de Lourdes. Diante da pergunta, os cantos da boca do pároco se ergueram em divertimento. "Quem você acha que é, Harry?", sua voz irradiava calor, "É Maria. Nossa Senhora de Lourdes, de Guadalupe, da Estrela, das Dores, de Pompeia, dos Prazeres - são todas uma só. São todas a mãe do Salvador".

O impacto da resposta fez Harry se sentir como uma criança defronte de um escândalo.

Pareceu que a realidade havia se dobrado diante de seus olhos.

Ao perceber que Maria era muito mais complexa como nunca imaginara e que sua religião, cuja crença até então achava basear-se em preceitos simples, preto no branco, admitia nuances acinzentadas, ele estarreceu-se.

Então santidades podiam ter mais de uma faceta? Inacreditável.

Bem, a Santa Margaret Ward, canonizada como mártir por ter ajudado um Padre a escapar de uma prisão em Londres e que, não cedendo às torturas, mantera em segredo o paradeiro do mesmo e ainda rejeitara - com orgulho - a proposta de se converter à Igreja Anglicana em troca do perdão, tivera como fim trágico a forca, apesar de sua grandiosidade é apenas uma.

Ela não tem devotos espalhados pelo mundo, eles concentram-se em Cheshire - região onde ela viveu a maior parte da vida. Até porque só há uma igreja batizada em sua homenagem, e esta é a igreja que a família de Harry e Niall e mais um punhado de gente frequenta aos domingos, em Holmes Chapel.

Mas este não é o caso da jovem mãe, cujo sofrimento foi fonte de inspiração para inúmeros artistas ao longo do tempo. Ora, não há como não se comover diante do retrato de seu luto iminente. Pelo menos é o que Harry julga.

É algo no olhar, sem dúvidas. Algo que só as mãos dos melhores escultores e pintores conseguem capturar com maestria: a dor e o amor abundante que clamam do espectador, ao mesmo tempo, na mesma medida, a sua lamentação e a sua solidariedade e o seu fascínio.

Ao encará-la, Harry é arrebatado pelo poderoso e santo amor materno; aquele que em situações difíceis acolhe o fruto de seu ventre dentro do peito a fim de dar-lhe proteção, nutrição e força.

Mas, claro, não é só isso. Pois, afinal, a mulher está na presença do filho torturado, que desvanece em sangue e agonia. Portanto, seu semblante carrega também o peso da tragédia. Uma desolação imensurável. Uma melancolia que linguagem nenhuma consegue verbalizar.

Mas Deus nunca coloca em nossos ombros um peso maior do que as nossas forças, o seminarista sabe.

Jesus foi crucificado, sim. Mas ressuscitou e ascendeu ao trono de glória no Reino dos Céus, ao lado do Pai.

immaculate sin of the lovers • L.S.Onde as histórias ganham vida. Descobre agora