20: papo sincero

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Guilherme Marechal (MARECHAL)

Entrar nessa casa é como se o passado invadisse a minha alma, aos poucos eu perco todos os sentidos do presente e me vejo naquele dia. Parado dentro do armário como um covarde, sem sequer conseguir mover um músculo e me vejo impotente, amedrontado e com raiva. Infinitamente com raiva, mas sem ação nenhuma.

—Tá tudo bem? —Escutei a voz da Lorena e logo meus olhos se abriram.

Olhei ao redor da sala vendo o sangue ainda marcado no piso de madeira, mesmo que um tapete daqueles de várias cores cobrisse metade da marca. Olhei para o teto ainda vendo um pedaço da corda e o meu coração se apertou. Lorena estendeu o braço segurando a minha mão me trazendo para a realidade e não para aquele dia. Observei o rosto dela que me encarava preocupada e com curiosidade.

—Essa é a minha casa, morei aqui desde quando eu nasci até os meus 12 anos. —Peguei um dos porta-retratos da minha família e entreguei nas mãos dela. —Essa é a minha mãe Maria, meu pai José e a minha irmã mais velha Clara. Todos eles morreram...

—O quê? —Ela me olhou assustada.

—Morreram aqui, exatamente nesse cômodo enquanto eu tava dentro daquele armário. —Me aproximei do armário observando algumas marcas de arranhado que eu fiz antes de sair da casa. —Morreram na minha frente e eu não pude fazer nada, esse é o meu maior pecado. Não ter salvo a minha família.

—Você sabe que isso não tem como ser sua culpa...

—Eu tento colocar isso na minha cabeça durante anos, Lorena. Mas da mesma forma que tu se sente culpada por uma parada que tu não teve controle, eu também me culpo. —Ela abaixou a cabeça. —O caso de 2017 foi você, certo?

—Foi... —Passei meus dedos ao redor do rosto dela fazendo ela me encarar.

—Aquele cara matou a minha família e por isso em parte foi a melhor vingança que eu já fiz na minha vida. —Soltei o rosto dela pegando a mão a puxando para fora casa, esse lugar ficou pesado desde que tudo aconteceu e mesmo sendo a minha casa, não me sinto confortável.

—Você quer contar como aconteceu? —Ela falou meio que travando, talvez pensando que não seria uma boa coisa.

—Vai ser esse nosso papo sincero. Quero te conhecer antes de qualquer coisa e eu quero que tu me conheça. Pra no final tu dizer se ficar comigo é o que tu realmente quer. —Paramos em uma pedra grande que ficava em frente a casa e nos sentamos olhando a vista da comunidade. —Porque se tu disser que quer ficar comigo, eu não vou te soltar, Lorena.

Ela observava cada canto da comunidade lá em baixo antes de virar o rosto pra mim. E porra, essa mulher é extraordinária. O olhar marcante, o cabelo cacheado voando para o alto com o pouco vento que tinha e os lábios avermelhados que fazia ter vontade de grudar em um beijo infinito. Mas ainda não posso ter ela pra mim, preciso de sua permissão antes de tudo.

—Eu sou todo errado, Lorena. Não posso dizer pra tu que cresci numa vida certa. Antes da minha família morrer eu fui bem criado, meu pai nunca mexeu com corre errado. Trampava de domingo à domingo com obras e no tempo livre vendia bala no sinal pra colocar comida em casa. —Respirei fundo pensando no meu coroa. —Minha mãe era aquele tipo de mulherão, trampava como doméstica, mas não faltava afeto dentro de casa. E a minha irmã Clara, ela estudava, mas já com o pensamento de precisar trabalhar cedo trampava em um salão na comunidade.

UM LANCE PERIGOSO (MORRO)Where stories live. Discover now