03 - A Raposa nas Sombras

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Mikhail

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Mikhail

Por mais insano que fosse, falar de Wulftarg me trazia certa nostalgia, já que na infância eu era completamente normal. Os outros garotos não tinham coragem de mexer com um herdeiro da alta nobreza, era bom, apesar das piadas e broncas dos parentes adultos sobre meu jeito, comentários que era jovem demais para entender o verdadeiro teor. Fui uma criança feliz, mamãe sempre foi muito gentil e ajudei a cuidar de meus irmãos contra vontade de meu pai.

"Filho meu não vai viver pendurado em berço" dizia ele irritado toda vez que me pegava com meu caçula no colo. E mesmo sobre Jurg haviam coisas boas, lembro-me de como ficaria orgulhoso de meu desempenho na fragata, ou da forma que teve uma paciência de santo para me ensinar a empunhar uma espada por longos anos. Meu pai não é um homem ruim, apesar das ideias horríveis em sua cabeça, ele é devoto da esposa e a trata como uma rainha, sempre tratou. Então, por que só comigo...

As ondas se chocavam contra o navio como de costume, havia começado a chover há algum tempo, mas ninguém se importou muito com a água quando havia tanto trabalho para fazer. Acochava as cordas com toda a força que meus braços detinham, e as gotas pesadas de água se chocando contra a imensidão azul produziam o mesmo som que recheou meus dias de infância. Não sabia se isso me trazia paz ou desespero.

"É assim, filho. Você precisa enrolar a corda nela mesma, lembre de amarrar a ponta antes senão vai matar alguém" dissera Jurg um milhão de vezes. "Isso, Jurgev, agora puxe o relevo até virar um meio laço". Engoli em seco, sabendo que lágrimas lavavam meu rosto quando terminei o maldito nó, Jurg era um bom professor. Deveria ficar longe de navios e do mar, não há como esquecer de meu pai vivendo assim. Não há como esquecer o que Jurg fez comigo assim.

Com a escuridão da noite e a chuva me cobrindo, afastei-me do resto da tripulação, do som da água feroz e de meus deveres, apesar de todas as cordas estarem bem presas agora, ainda haveria mais a ser feito. O chacoalhar do navio me desequilibrava, mas agarrei firme no corrimão de madeira e desci as escadas sem pensar duas vezes, solucei sozinho no convés inferior, aquele maldito pesadelo não me deixaria em paz, não é?

Avancei deque adentro, não queria correr o risco de ser visto naquele estado. Tropecei, cambaleei e até mesmo bati a cara contra uma coluna do navio no processo, o que me renderia um corte no lábio com certeza. Estava com dor e cansado, mas não podia parar, era um homem, e homens não eram vistos chorando as pitangas por aí. Trombei em um lampião, foi querosene para todo lado, escorreguei já na escadaria para o cômodo vazio que Eadan me trouxera, cai de costas como um tolo, batendo a cabeça e cercado pela escuridão de minha estupidez.

Ninguém viria, sequer teriam dado por minha falta, a dor aguda apoderou-se de minhas costas e fez farra com minha nuca. Continuei deitado, já que não seria seguro levantar depois de uma pancada daquelas na cabeça, meu corpo esfriou, e eu poderia tremer naqueles trapos encharcados, mas o cansaço não permitia, tremer consumiria energia demais e eu ainda não havia colocado aquela sopa horrorosa de Gillie na boca para aguentar isso.

Ruby da Fortuna: Raposas do MarWhere stories live. Discover now