09 - O Sextante do Imperador

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Eadan

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Eadan.

Quando Mikhail fez aquela pergunta maldita eu decidi que não queria ouvir a resposta, não precisava ser lembrado de minhas falhas. Arrastei Kitzla comigo porque sabia que ela não teria força para sair da cabine sozinha, a filha do cozinheiro e meu irmão estavam noivos na época, mesmo que ela não fosse parte da tripulação. Não trocamos uma mísera palavra, mas a mulher pareceu grata quando a deixei sozinha no meio do convés e fui me ocupar de conferir as correntes do timão.

Eles demoraram muito na cabine, o que só parecia me incomodar entre os membros da tripulação. Os outros raspavam o casco, elogiavam a limpeza do convés feita por Mikhail, conferiam as cordas do mastro e carregavam suprimentos para o navio como se fosse um dia qualquer. Travei o maxilar. A tripulação tinha aceitado Mikhail mesmo que ele fosse um Carveryon. Ninguém além de Jean teria muito a dizer sobre isso. Era metade da manhã, e o ar frio do mar me mantinha refrescado mesmo que o astro-rei queimasse minha pele, e eu não estava exatamente irritado com aquela constatação.

Não queria ver Mika indo embora, não queria entregá-lo no Império. Mas queria ainda menos aquele bosta recebendo atenção de meu pai, aprovação de meus homens, visitas da Deusa dos meus ancestrais. Por que justo ele? Nunca cansava de me questionar, já que aquele bosta parecia ter tudo tão fácil. Repousei a testa na madeira do timão. Fácil? Eu tinha ouvido aquele moleque gritar no meio da madrugada, implorando perdão por sabe a Raposa o quê, o vi praticamente rosnar de ódio com a mera menção de ser devolvido a Jurg nos primeiros dias a bordo. Nada era tão fácil quanto parecia para o Colher de Chá, mas seria impossível não ter raiva dele.

Raiva? Minha espinha se arrepiou e tive certeza de que alguém estava rindo de mim. Levantei me afastando do timão para buscar quem era o imbecil, muito mais que disposto a quebrar uns dentes se necessário fosse. Todos estavam ocupados com o próprio trabalho, não podiam se importar menos com meus delírios. Ergui os olhos para o céu, talvez o sol estivesse me pregando peças, bastava beber alguma água e descansar a cabeça um pouco. Mikhail e Thierry estavam na popa do navio, o Colher de Chá sorria abertamente segurando o sextante de cobre em suas mãos calejadas pelas cordas do navio. Raiva? Eu estava morrendo de inveja daquele desgraçado.

Dez anos? Não, dezessete anos. Dezessete anos atrás, quando eu era só um moleque ranhento correndo pelo convés, fomos pegos por uma tempestade insana no litoral das Ilhas Guarauyri e lembro de ter durado uma eternidade. Dias e mais dias sem ver a luz do sol, ou poder se guiar pelas estrelas, quando a fúria do mar finalmente cessou ninguém fazia a menor ideia de onde estávamos. Eram águas muito mais que desconhecidas, aquilo parecia um outro mundo de mar negro amaldiçoado. Não havia peixes naquela água, nem aves no céu, o pouco vento batendo nas velas não seria suficiente para nos tirar dali antes que a fome nos levasse ao canibalismo ou coisa pior.

Daryn e Killian eram dois moleques assustados assim como eu, mas meu primo sempre foi a estrela do grupo. Yuriko não o teria escolhido se não fosse o caso. Meu pai e Bill discutiam a viabilidade de mandar um bote em busca de qualquer grão de terra, o então cozinheiro provavelmente buscava as receitas que envolvessem carne humana já que haveriam mortos mais cedo ou mais tarde. Mas Daryn não abaixou a cabeça nem sucumbiu ao desespero, por mais que eu tenha a clara memória de suas pernas tremendo, e de como nossos estômagos roncavam.

Ruby da Fortuna: Raposas do MarWhere stories live. Discover now