PNF - Capítulo 15

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[Rodrigo Aguilar - São Paulo]


Preciso mijar.

Não urinar ou fazer xixi. Mijar, mijar.

Mas, como está no décimo terceiro mandamento bíblico: não gozaras das suas necessidades fisiológicas enquanto fores Chef, eu resolvi segurar. O que não era uma boa ideia, mas o que eu poderia fazer diante da situação, não é mesmo?

Talvez se eu chorasse, o xixi começasse a sair pelos meus olhos em forma de lágrimas, me livrando desse desconforto ruim, e eu nunca mais precise ir ao banheiro. Como ninguém nunca pensou nisso antes?

—Mesa 5: um Fettuccine com molho de cogumelos, um Robalo com especiarias e um Carré marinado ao ponto. Quanto tempo?

Falei um pouco mais alto, mas sem gritar, porque na minha cozinha ninguém grita. Só quando alguém queima o dedo...

—Cinco minutos.

—Sete minutos, Chef. – Vicente, da praça das carnes, falou ao mesmo tempo.

—Vocês se decidam. Eu preciso soltar tudo junto.

Apesar do caos interno que cada um deveria estar carregando dentro de si, a cozinha transparecia totalmente o contrário, todo mundo quieto e só o barulho das panelas e colheres se mexendo. Ou talvez tudo mundo estivesse tão tenso que não conseguisse expressar outra coisa que não fosse silêncio. De qualquer forma, era melhor assim. Não que eu fosse um chefe tirano – quem que em sã consciência admite isso – mas era melhor assim, a cozinha requeria total concentração.

—Chef... – Liz chegou até a mim com uma panela em mãos e uma colher levantada em direção a minha boca. Eu poderia facilmente me acostumar em ser alimentado assim todos os dias, mas eu sabia que isso era só pra aprovar ou não o que ia pros clientes. Ninguém dá asas à cobra, Rodrigo.

—Falta sal. – Digo depois de provar o molho. – Mas não coloca sal.

Enigmas do Rodrigo. Tipo o Mestre dos Magos da Caverna do Dragão, solto o enigma e quando mais precisam... puff, eu sumo numa nuvem de fumaça sem que ninguém me veja. Alias, pra onde será que ele vai? Se ele sai dali, poderia muito bem levar as pessoas com ele, não?

Liz pareceu pensar, e eu sabia de toda a sua capacidade, por isso não me preocupei. Aquelas pessoas lá fora iam comer do bom do melhor.

—Queijo, Chef? Eu posso ralar um pouquinho daquele Minas salgad...

—Boa, garota.

Sei que ela se espantou um pouco, mas seu sorriso não deixava de mostrar o quanto ficara feliz em ser chamada pelo gênero certo. Liz é trans e me contara – nos muitos dias em que éramos nós que ficamos pra limpar e ajeitar tudo pro outro dia – que perdeu o emprego quando começou sua transição, num notório caso de transfobia, foi aí que eu me solidarizei com seu caso.

O fato é que existe um certo estranhamento ainda com os/as trans, travestis, drags e afins quando se trata de exercer um cargo que não esteja ligado diretamente a arte ou carreiras mais liberais. As pessoas ainda não estão acostumadas ou preparadas pra quando isso acontece, causando situações de desconforto e preconceito. Mas pergunto, eu, qual é o problema? Não deveria haver nenhum, já que a capacidade pessoal não está diretamente ligada ao seu gênero, nem a sua sexualidade. Por isso, quando ela me revelou ser trans na entrevista pra entrar pra equipe do restaurante, eu só lhe disse que se ela soubesse emulsionar, deglacear e acidificar com perfeição – já que ficaria responsável pelos molhos – o resto não era da minha conta e ela não precisava se preocupar.

Por Nossos FilhosWhere stories live. Discover now