CALI
Eu não entendo muito de deuses e suas vontades, especialmente a de construír coisas, mundos, seres. Minhas recentes experiências não me permitem entender muito á quê isso leva, já que uma hora ou outra, deuses abandonam o que construíram, deixando para trás dúvidas e dor em sua construção.
Tal qual Cardórie.
Nada fora construído. Ao menos nada que aparenta ter vida própria ou consciência. O chão é vasto e coberto por folhas coloridas -fora as que me rodeiam- algumas macias, algumas secas. Eu não tive somente a impressão de que o céu esta mais próximo de mim, ele esta. Mesmo. Um teto baixo e colorido.
Perguntei algumas coisas a menina-deusa a minha frente, curiosa por suas motivações e idéias. Ela criara um mundo e experimentava o que mais criar nele. Coisas que parecem plantas são o que me cercam, únicas em sua existência, como se a pequena deusa não conseguisse se decidir o que criar, ou se gostara de sua criação, largando-a após tê-la feito e não mais a repetindo.
— Você disse que esse é seu mundo?
— Exatamente. E você o está estragando.
— Como assim? — pergunto, defensiva.
A pequena menina se abaixa a minha frente, e de seu vasto e comprido vestido branco de repente surgem braços semelhantes aos meus, mas com apenas longos três dedos em cada mão. Ela pega meu braço e o examina.
— É terminal. — apenas a olho e ela continua. — sua condição.
— Não é uma condição. É magia.
— Eu sei o que é. E sei que não é sua. — afirma com precisão, passeando a ponta de seu estranho dedo sobre minha pele.
— Como sabe?
— É magismo que não pertence a ninguém. Apenas intoxica. Uma ont vinda da Träd. — ela me olha e suas gralhas gorjeiam. — Não é sua. A Häxeri só reside e perdura em sangue divino. E você certamente não é uma deusa.
— Ráqui... Ráqui... — desisto de tentar repetir o que ela me disse. — Não, certamente não sou uma deusa. Se fosse... — respiro fundo, preferindo não terminar a frase. — Como sabe que é magia de deuses?
— Como você não sabe o que é? — ela responde com outra pergunta. — Roubou ou lhe foi dada?
— Faz diferença?
Seu estranho dedo ainda percorre o caminho negro que minha veia cava. Ainda tenho o negrume tomando partes de meu corpo e a peculiar garota os estuda. — Você não tem o necessário para roubá-la. Não a controla. Mas a tem. Qual deus ou deusa é de tua genealogia?
— Nenhum. Quem me injetou isso foi a Sombra. — não, eu não sei o que exatamente é quem me deu essa magia. Nem me preocupei em saber. Aceitei a ajuda da Sombra pois imaginei que me seria o suficiente para cumprir minha missão. Sim, imaginei que ela fosse uma entidade poderosa, apenas nunca imaginei que fosse uma... deusa. — Por que diz que estou estragando seu mundo? — tentando não pensar em minha falida missão, quero mudar de assunto imediatamente.
— Olhe a sua volta. — o faço. — Vê? Essa magia, que não é sua, retirou as cores de minhas folhas. — ela aponta para o círculo a nossa volta. Duvidando de sua acusação, dou alguns passos para fora do círculo e entendo exatamente o que ela quer dizer. Por onde passo, mais escuridão se espalha no solo assim que firmo meu pé ao chão. Me viro de volta para a menina, sem saber o que fazer para que isso pare.
— Me desculpe. — digo genuínamente. — Não sei porque faço isso... aliás, não sei nem como vim parar aqui.
— Hum... — seus amarelos olhos me observam. — Você sabe muito pouco sobre menos ainda. De onde você é?
É, ela vai me forçar a dizer a palavra em alto e bom som. Busco forças em mim para poder pronunciá-la.
— Adaris.
Ambas aves batem seus bicos.
— Sabe pouco sobre menos ainda. — me dizem. — Pelas asas, parece uma fada de Adaris... Mas pelos cabelos, parece de Lhira. Ou Ionaris.
Não me interessa. Não quero falar de Adaris agora, e curiosa em relação aos outros lugares citados, pergunto a ela mais sobre eles.
— São alguns dos mundos de fadas que conheço. Existem muitos outros. Estive em dois dos que citei. Adaris fora um deles. Um lugar de beleza e poder invejáveis. Lhira fora outro. Aquelas são as fadas mais sábias que já conheci.
Não sei se rio se choro com o que ela diz. Adaris, beleza e poder são palavras que não saem na mesma frase de forma positiva e correlativa ultimamente. E por isso, mudo de assunto novamente.
— Você quem criou esse mundo?
— Sim! E muitos outros. — ela dá dois passos a minha frente. — O que acha?
— Um pouco vazio, não?
— Exatamente! — a pequena deusa retorna até mim. — E é assim que deve ser!
— Bem... sem criação não há muito como dizer que se criou algo, não acha?
— Não! Criar significa construir. Crescer. Há criações aqui. Mas você espera ver... criaturas. A meu ver, criaturas destroem criações. Se eu tivesse criado algo, como esperas, já não mais teria o que criei. — Ambas as aves gorjeiam com suas constatações. — Crio coisas que não sabem que foram criadas. Suas condições me poupam de caos. Caos, caos, caos! Me poupam de ter que protegê-las de se descriarem. "Oh, salve-me, criadora! Salve-me dos erros que cometi!" gritariam comigo. Todas as criaturas de todos os deuses são tão necessitadas e complicadas, carentes de eterna atenção. — O tom da ave que falava agora era mais sério. — E criaturas querem sempre ser como seus criadores... sempre insatisfeitas! É um perigo constante criar algo!
Apenas ouço as aves falarem, uma de cada vez, continuando suas frases coordenadamente. Eu não quis responder, pela primeira vez ouço o discurso de uma criadora que não gosta de criar coisas.
— Olha... eu posso não saber muito sobre menos ainda, mas... isso tudo é muito contraditório, não?
— Não!— responde contundente. — Não vê o que acontecera com Galór? Gaia? Guisa? Guendri?
Não pude evitar ter minha atenção chamada pelo último nome por ela citado.
— Você conhece... Guendri?
A menina-deusa fecha os olhos e as aves fazem barulhos semelhantes a risadas, batendo suas asas euforicamente.
— Mas claro que o conheci! Você não?
— Não... Nunca o vi.
— Não sabe nem como é quem você diz ter te criado. — uma ave constata e as duas se põem a repetir o seguinte, várias vezes: Sabe nada sobre menos ainda!
Sem muito humor, engulo o pequeno desaforo e continuo minha inquisição, ficando curiosa mesmo sem querer ficar. Quando mais quero me distanciar de tudo isso, algo parece me puxar de volta.
— E por um acaso, sabe aonde ele está?
As risadas param, e seus enormes olhos agora me estudam de perto, como se minha pergunta fosse descabida.
— Ora, fada... Mas é claro que sei! Todos sabem! — ela balança a cabeça e fecha os olhos, parecendo apreciar o que está para me dizer. — Guendri está pagando pelo que fez!!
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obs. Häxeri se pronuncia "réquissieri"
ESTÁ A LER
ADARIS
FantasyA cidade de São Paulo está pipocando de gente maluca e para variar, agora tenho duas dessas em meu quarto, tentando me convencer de que posso ajudá-las numa bizarra missão que envolve encontrar uma fada-rainha desaparecida chamada Mabelai para salva...