CAPÍTULO SEIS

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— Eu não acredito que você está saindo pra ir trabalhar! — exclamou a garota para pai. — Guto foi levado ontem!

As lembranças não se distanciavam de sua cabeça. Os piores sentimentos do mundo estavam acumulados em seu coração. Ela não queria continuar sua rotina. Não iria para a Praça nem que os Sem-Caras lhe obrigassem! Desejava ficar na cama pelo resto do dia, no velho e desconfortável colchão que costumava dividir com o irmão. Como ele fez falta naquela noite...

— Preciso ir — respondeu Klaus, com o tom triste. — Precisamos garantir nossa comida. Não precisa sair hoje. Vou passar na Praça antes de voltar pra casa... Tenho certeza que conseguirei trocar alguma coisa.

— Não ligo pra comida! Eu ligo pra você. Pra ficarmos juntos! Maldito seja!

— Olha a boca... — repreendeu ele; odiava quando os filhos soltavam palavrões.

Lá fora, o clima era frio e chuvoso, combinando perfeitamente com o estado daquela casa. O som das gotas atingindo o solo era desconfortável.

— Não podemos nos deixar abalar, Kaya. — Se aquilo fora uma forma de consolá-la, não deu certo. — Temos que continuar. Estávamos cientes dos ataques. Poderia acontecer a qualquer momento...

Por mais convincente que soasse, a menina conseguiu identificar Klaus tentando esconder seus sentimentos. Ele não queria desabar na frente dela, igual havia acontecido quando sua mulher morrera.

O pai deles nunca fora a favor dos planos de Eloá, principalmente do protesto bloqueando a passagem das máquinas. Implorara para a mulher não ir. No entanto, ela não deu ouvidos. Ao receber a notícia do massacre, Klaus despencou. Seus sentimentos o afundaram numa choradeira sem fim, o incapacitando de todas as tarefas. Com pouca idade, a garota teve que aprender a se virar e a cuidar de Guto sozinha. Foi quando fez sua primeira armadilha eficaz para animais.

Ela tinha certeza de que a pressa dele para sair de casa era para poder desabar no choro sem ter ninguém por perto.

— Não... não daquele jeito... — falou. — Não com Guto...

O homem deu mais um passo para frente, envolvendo o corpo magro da garota em seus braços e a puxando para um abraço. Eles se apertaram. O pai projetou um beijo suave em meio a seus cabelos embaraçados.

— Vai ficar tudo bem...

E todo o clima foi quebrado em seguida, pois ele se separou da filha e saiu pela porta, sem nem mesmo olhar para trás. Deixou-a ali. No meio da sala. Era como se não tivesse perdido apenas o irmão, mas o pai também. Os Sem-Caras destruíram toda a família dela. Levaram-lhe tudo.

E a garota sentia o sentimento de revolta a aflorando; enraizava em seu peito e se espalhava pelo resto de seu corpo. A Música da Resistência repetia-se em sua cabeça o tempo inteiro, focando a parte do "Eles virão". Não dava mais para aguentar de braços cruzados.

Kaya vestiu uma blusa laranja, agarrou sua mochila em seu quarto e saiu de casa, pisando com violência no chão lamacento. Vestiu o capuz para não ficar tão molhada com a chuva. Com passos rápidos, chegou à casa de Dan. Bateu três vezes seguidas na porta. Assim que o rapaz surgiu do outro lado, ela anunciou:

— Eu tenho uma ideia.

***

Leyr não aguentava mais ficar naquele lugar. Dormir no chão de uma estrutura abandonada, exposto às bactérias, não foi grande problema, nem ser acordado pelas malditas goteiras bem em cima de seu corpo. Pra quem já vivera na rua, aquilo não gerava nada além de desconforto — e também agravou suas dores musculares. Os insetos voadores foram repelidos pela substância feita por Chloe, então também não foram obstáculos. O verdadeiro desafio era continuar a missão sem ter nenhum contato com seus amigos.

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