CAPÍTULO NOVE

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No ponto combinado, bem na frente do buraco da cerca que Kaya explicara, Leyr aguardava de braços cruzados e com o ombro encostado no tronco de uma árvore. Fazia uns vinte minutos que ele estava ali. Já pensava em ir embora sozinho quando ouviu alguém se aproximar de entre a vegetação. Era ela.

Assim como o rapaz, não trocara de roupa; usava o moletom laranja úmido por causa da chuva. Contudo, sua mochila parecia mais pesada em suas costas. Os olhos estavam vermelhos e inchados, o nariz da mesma cor. Definitivamente, havia acabado de chorar. Leyr sabia que não era fácil deixar seus amigos e familiares para trás. A garota estava se atirando no escuro, com o objetivo de salvar o irmão. Isso era amor verdadeiro de família.

Algo que ele nunca teve.

— Pronta? — perguntou, se afastando da árvore.

Ela parou a alguns centímetros dele, encarando-o com a expressão cansada. Balançou a cabeça como resposta, assentindo.

Enfim, eles se viraram para a cerca e a atravessaram, indo em direção ao Lado de Dentro.

***

Apesar da chuva ter cessado há um tempo, gotas ainda pingavam da copa das árvores.

Se toda aquela história fosse verdade, seria uma longa caminhada até chegarem a seja-lá-o-nome-daquele-lugar. Kaya já andara bastante pela floresta, nunca se aprofundara demais, mas se lembrava de chegar a se perder para voltar. Apesar de ser restrita aos moradores, não era nada pequena e seus recursos poderiam ser bem aproveitados. Contudo, todos tinham medo do "além da cerca" por causa dos Sem-Caras.

Até podia existir mesmo algum lugar chamado Lado de Dentro, isolado de Antã. Não era uma ideia tão absurda. Porém, esse negócio de imunidade não era tão fácil de engolir. Muito menos esses remédios. A garota já ouvira falar em sistema imunológico, porém sabia apenas sua função: proteger as pessoas das minúsculas bactérias e dos vírus causadores de doenças. Já vira pessoas adoecendo com mais facilidade do que outras. Dan, por exemplo, ficava gripado constantemente, enquanto ela só pegara essa doença uma única vez em toda sua vida.

Além disso, também viu pessoas morrerem por causa de pragas fortes, como foi o caso do pai do garoto. Ficara pálido, imobilizado aos poucos. Nenhum remédio adiantava, ele apenas piorava, até chegar ao limite e partir para sempre. Mesmo assim, era difícil acreditar em tudo dito por Leyr. Mantinha-se atenta a cada movimento do rapaz. Tinha uma faca guardada na cintura, como também carregava grande quantidade de veneno na bolsa. Estava preparada.

Havia demorado para chegar ao ponto de encontro por ficar mergulhando a lâmina de sua arma diversas vezes numa substância feita com veneno de cobra e ervas tóxicas. Um arranhão com aquilo e o inimigo ficava paralisado por um longo tempo. Os caçadores adoravam usá-lo.

— Essa cidade que você mora — falou ela. — Os Sem-Caras controlam absolutamente tudo lá? Esse tal governo...

Ele olhou por cima do ombro para respondê-la, sem parar seus passos.

— Controlam — respondeu. — É uma merda, na minha humilde opinião. Mas eles não são tão ruins com a população, por incrível que pareça. Só com quem quebra as leis deles, tipo eu.

— Leis?

— São... regras — ele explicou. — Regras que todos são obrigados a seguir. Se você cometer um crime, mesmo sendo pequeno, é considerado Insurgente e é caçado. Uma vez que te pegam, já era. Nunca mais se ouve falar em seu nome.

A adolescente achou estranho esse sistema de regras. Era bem diferente de Antã.

— Nós também temos algumas regras, mas fomos nós mesmos que impomos — ela falou, abaixando-se para passar debaixo de um galho. — Por exemplo, não é permitido roubar os suprimentos dos outros, muito menos matar ou atacar algum cidadão por qualquer motivo. Exceto autodefesa. Quem desobedece é castigado sendo banido da cidade pra sempre. Mas não tem ninguém administrando isso. Quando ocorrem furtos ou assassinatos dos quais não tiveram testemunhas, as famílias envolvidas se reúnem para buscar entender o ocorrido e encontrar o culpado. Muitas vezes acaba não funcionando...

O Lado de ForaDonde viven las historias. Descúbrelo ahora