CAPÍTULO SETE

466 82 33
                                    

Kaya e Dan entraram em um estabelecimento de troca quando o céu já estava quase todo escuro. Ainda encharcados, sentaram-se em frente ao balcão de madeira. A garota já esteve ali muitas vezes. O comércio era feito por apenas uma família, onde todos trabalhavam para o lugar funcionar. Os filhos atendiam as pessoas que vinham, enquanto os pais coletavam o que precisavam na natureza, ou de sua própria colheita. Eles davam os mais diversos tipos de bebidas — feitas pela mãe — em troca de carnes, matérias-primas, frutas, vegetais, ervas, especiarias... Algumas das misturas a adolescente não gostava de tomar, pois continham açúcares fermentados de uma maneira que poucas pessoas em Antã sabiam fazer, deixando o líquido ardente e, de certa forma, "delirante". Também podia viciar. Álcool, Kaya lembrou, bebidas que continham álcool. Além dessas, havia as com ervas alucinógenas e os chás calmantes.

Ela evitava todas essas, pedindo sempre algum suco de frutas, sem exagerar nas misturas.

— Vou querer o de sempre, Pete — disse ao garoto do outro lado do balcão, que devia a eles por causa do coelho inteiro que deram há alguns dias.

— O mesmo — disse Dan.

Era uma mistura julgada pela adolescente há muito tempo e, agora, sua favorita: melão com limão e hortelã. O acréscimo de açúcar deixava a bebida incrível. Era um dos poucos momentos que Kaya conseguia ter contato com algo adocicado por humanos. O açúcar era especialidade apenas de uma das regiões mais distantes da sua, onde havia, além de diversos cultivos de cana-de-açúcar, as alçapremas, que eram utilizadas para moer, e as fornalhas, que aqueciam o caldo para a cristalização.

Quando seu copo chegou cheio e gelado, ela aproveitou seu suco para esquecer da recente humilhação. Não conseguia acreditar em como fora deixada de lado pelo próprio povo. Ninguém sentia aquela revolta no peito? Nem mesmo os que perderam familiares? Os Sem-Caras tiraram-lhe a mãe e o irmão, não dava mais para suportar; era como ser esmagada por uma gameleira.

— Eles nunca vão deixar de ter medo... — falou a garota. — Medo de lutar...

Então, tomou um gole de sua bebida.

— Todos ainda pensam no massacre... — respondeu seu amigo.

Ela virou seu olhar para ele, expressando decepção.

— E nunca vão querer ajudar a maluca que é filha da ex-líder da Conjuração — concluiu.

Não havia o que fazer. O massacre destruíra toda a coragem existente de seu povo. Uma adolescente tentando convencer as pessoas a lutarem contra o sistema era uma piada.

— Não pense assim. Você acabou de começar, minha querida. Não se deixe levar por causa de uma derrota... — ele consolou. — Não podemos deixar mais crianças morrerem...

— Guto não morreu — ela o interrompeu. — Não faria sentido eles raptarem nossas crianças para as matarem. Estão as usando pra alguma coisa, Dan. Eu só espero que não as machuquem...

Pensar na possibilidade de seu irmão estar morto era ainda mais revoltante. Ele tinha que estar vivo e deveria existir algum jeito de recuperá-lo. Talvez eles pudessem recuperar todas as crianças capturadas se tentassem lutar. No entanto, o medo paralisava Antã e criava uma população acostumada com a injustiça.

Na porta, o misterioso garoto encapuzado entrou, já vindo na direção dos amigos. Kaya o viu se aproximar atrás de Dan, sem ele perceber, e tirar seu capuz molhado, revelando seu rosto. Assim que chegou neles, se apresentou:

— E aí? Vi seu discurso na Praça. Queria falar com você... — Olhou para Dan, que estava distraído com seu suco. — Em particular.

Dan estranhou ao ouvir isso, olhando para o desconhecido com desconfiança. Hesitou por alguns segundos, mas, após Kaya pedir para ele não se preocupar, tomou sua bebida de uma vez e saiu. Enfim, o outro rapaz se sentou em seu lugar, erguendo sua mão para cumprimentá-la. Ela aceitou, percebendo as luvas felpudas nas mãos dele.

O Lado de ForaDove le storie prendono vita. Scoprilo ora