CAPÍTULO VINTE

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Era noite quando Kaya resolveu subir para tomar um pouco de ar fresco. Todos estavam sabendo sobre o plano do dia seguinte, deixando a atmosfera ansiosa e, ao mesmo tempo, tensa.

Um deslize era o bastante; tudo iria por água abaixo. A garota não fazia ideia do que estava sentindo. Era uma mistura de sentimentos, envolvendo saudades, amor, medo, insegurança... Nunca se imaginara numa situação tão arriscada. Estaria em um lugar desconhecido, com pessoas desconhecidas, fingindo ser quem não era.

Contudo, a disposição para continuar seguia intacta. Faria tudo por Guto. Precisava salvá-lo, nem que fosse a última coisa que fizesse.

A adolescente saiu da central de comando pela mesma estação na qual entrara pela primeira vez, saindo na noite escura e gélida da cidade. Ouvia-se, dali, o som dos carros passando, das buzinas, do monotrilho correndo... Não era nada como os sapos noturnos, ou os grilos e cigarras cantantes de Antã. Comparar os dois lugares a fazia se lembrar de seu pai. Tentou, com esforço, imaginar o que ele estaria fazendo agora. Dan teria conseguido acalmá-lo? Será que contara a verdade? Será que parara de trabalhar? O que estaria comendo? Nada vinha em sua cabeça. Também tentava imaginar como Guto estaria; acorrentado em algum lugar? Preso numa cela? Passando frio e fome num corredor vazio e cheio de tecnologias desconhecidas?

A garota temia ao pior: sua família toda já estar morta. Com esse pensamento, Kaya estremeceu e inclinou a cabeça para trás, tentando não deixar as lágrimas subirem para os seus olhos. Captou uma sombra diferente: a silhueta de alguém em cima do prédio do beco de trás, por onde ela havia saído com Gustavo e Chloe. Ela virou, encarando a pessoa lá de cima, que estava defronte a um muro na beirada, com os braços apoiados em cima dele, observando a cidade.

A adolescente teve que forçar os olhos para identificar quem era: Leyr. O edifício tinha uns três andares, não era muito alto; mas, mesmo assim, ela se perguntava como foi que ele parou ali. Caminhou até a cerca e passou pelo rasgo, entrando na viela escura. Kaya andou, observando a parede de tijolos do prédio, procurando alguma forma de subir. Encontrou um contêiner de lixo, colocado perto de uma escada de mão metálica suspensa numa sacada. Ela só notara agora que aquele lugar estava abandonado ao ver uma janela escancarada e com o vidro arrebentado — além dos desenhos e símbolos estranhos dos quais Chloe chamava de pichações.

Com cuidado, a garota escalou o contêiner e observou a escada. O primeiro degrau ainda estava um pouco longe, teria que se esforçar para conseguir alcançar. Kaya respirou fundo, deu três passos para trás, pegou impulso correndo e se jogou na direção do degrau com os braços estendidos. Suas mãos agarraram o cilindro por pouco, seu corpo ficou balançando para frente e para trás; teve que usar toda sua força para aguentar seu próprio peso. Tudo rangia. Com esforço, se ergueu para alcançar a próxima barra. Gemia por causa das dores musculares. Após terminar o terceiro e último degrau, chegou à sacada.

Subir pelas escadas normais até o terraço não foi problema, mas ainda arfava quando chegou ao seu destino, encontrando o garoto de costas para ela. De início, pensou que não havia notado sua presença, mas isso logo foi desmentido quando falou:

— Podia ter feito menos barulho. Tomei um susto.

Kaya sorriu, se aproximando do garoto. Eles ficaram lado a lado, observando os prédios reluzentes do centro. As luzes de LED eram as estrelas daquela noite. Um vento gelado os atingia lá de cima, fazendo a garota abraçar o próprio corpo. Os sons pareciam ainda mais abrangentes dali, agora contendo latido de cães e falatórios distantes.

— Escalar não é meu forte — ela admitiu, sem tirar os olhos da cidade. — O que faz aqui?

Ele deu de ombros.

— Gosto de vir aqui. É um dos únicos lugares que posso vir sem ser reconhecido fora do metrô. E você? O que faz aqui?

— Precisava tomar um ar fresco. Não sei como vocês aguentam viver tanto tempo debaixo da terra. Além disso, precisava de um lugar calmo pra pensar. Lá embaixo as coisas estão meio agitadas por causa de amanhã...

— Como tá se sentindo em relação ao EACEI? — ele indagou, olhando para ela. — Sua confiança tá mais pra "eu sei que consigo" ou pra "vou fazer merda, o que eu estou fazendo aqui"?

Kaya virou seu olhar para os olhos dourados dele, rindo com a última pergunta. Notou que o garoto estava também com uma camiseta de manga curta, mas não parecia sentir frio.

— Eu não sei... — respondeu. — Uma junção dos dois ou sei lá. Só espero que Guto esteja mesmo em um daqueles caminhões...

— Sei como isso deve estar sendo difícil pra você... — ele falou, voltando a olhar pra cidade.

— Difícil? — ela repetiu, cruzando os braços sobre o muro. — Eu não consigo parar de pensar em Guto. Ou em meu pai. Não sei como nenhum dos dois está. Tenho medo das coisas que devem estar fazendo com meu irmão...

Os dois se encararam outra vez.

— Vocês parecem ser tão próximos... — ele disse. — Como ele é?

Kaya sentiu seus olhos brilharem ao perceber que iria começar a falar sobre seu irmão.

— Ah, nós somos muito próximos — ressaltou, voltando a fitar o horizonte. — O garotinho é pequeno, mas nunca o subestime. Ele é mais inteligente do que você possa imaginar. Sabe, uma vez, quando estávamos sem nada para comer, Guto saiu de noite escondido com alguns dos materiais do papai (os mais comuns, difíceis de serem trocados) e conseguiu trocá-los por carne, usando sua persuasão habilidosa de uma criança carente. Ele agiu sozinho. Ficamos o procurando por vários minutos; estávamos preocupados. No fim, ele acabou vindo até nós, com baldes cheios de alimento nas mãos... mal conseguia carregá-los.

"Também teve uma outra vez que eu me lembro bem, quando os Sem-Caras invadiram minha região em Antã e ele estava brincando com algumas crianças na rua. O barulhos daqueles... ér... como é mesmo? Ah, motores! O barulho dos motores o assustou e ele foi o primeiro a agir, guiando todos os amigos para um esconderijo escuro, no espaço pequeno embaixo de uma das casas de madeira. Naquele dia, muitos, incluindo ele, se safaram da captura por causa disso... Se estivéssemos perto daquela casa... nunca o teriam levado... maldito seja..."

Lembranças ruins começaram a engolir as boas: a correria do seu povo, gritaria, os irmãos fugindo pela janela da própria casa, correndo pelos cantos com cautela, sendo encontrados atrás das árvores...

— O que seu pai faria se te visse agora? — indagou o garoto. — Acha que ele ainda estaria contra tudo isso? Porque se eu fosse seu pai iria mandá-la voltar pra casa agora. — Começou a imitar a voz de um idoso: — "O que você pensa que tá fazendo com um desconhecido numa varanda escura, Kaya? Ficou maluca?"

A garota riu outra vez, imaginando seu pai falando isso — por mais que sua voz não chegasse nem perto dessa imitação. Imaginou como seria encontrar Klaus daquele jeito: com os cabelos cortados e pintados, invadindo o inexplorado, arriscando a própria vida com pessoas que ela mal conhece.

— Não sei — admitiu, imersa ainda em sua mente. — Talvez sim. Acho que ele me falaria pra parar com essa ideia de buscar Guto. Ele é desse jeito, inseguro com tudo... Pode ser um pouco autoritário às vezes, mas tudo que faz é visando o nosso bem. Eu só me preocupo em como ele esteja agora, já que está sem os filhos por perto...

"Sinto sua falta às noites. Substituiu o lugar de minha mãe em tudo em casa. Era ele quem lia histórias para Guto dormir, e eu adorava as ouvir. Algumas vezes, ele mesmo as inventava. Papai era mandão, mas muito afetuoso. Queria que estivesse aqui..."

Leyr encarou a garota, com um sorriso um pouco forçado, os olhos brilhando com lágrimas presas.

— Quem me dera ter uma família assim — ele desabafou. Parou, de repente de se apoiar no muro, dando alguns passos para trás. — Acho melhor voltarmos. Minha bunda tá congelando aqui.

A garota encarou o rapaz por alguns instantes, permanecendo em silêncio. Será que família era um assunto muito profundo para se tocar com Leyr?, pensou. Por que estava nas ruas? O que fizera para se tornar Insurgente?

— É... — ela concordou. — Melhor irmos...

Enfim, os dois voltaram para a estação de metrô.

O Lado de ForaWhere stories live. Discover now