Basta uma ligação

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Queria parabenizar os esforços de Glória. Ela realmente criou a atmosfera perfeita para receber todos os familiares que eu não sabia nem o nome e tinha certeza que mesmo após o dia de hoje continuarei sem saber. 

Muitas tias e tios chorões, primos e primas sarcásticos, amigos de amigos que eram quase família me elogiavam por ser forte e guerreiro. Eu não aguentava mais. Também não podia beber por causa dos remédios, o que tornava tudo mais desgastante. Eu tomava uma pílula por dia, de acordo com a enfermeira que verificava minha recuperação era alguma substância com nome difícil que colaborava com alguns problemas causados pelo acidente, e adicionou ser vitaminas! Posso não lembrar de muitas coisas, mas vitaminas não precisavam ser tomadas no mesmo horário todo dia. No entanto, não questiono, seja o que for, ajudava na recuperação.

- Você tinha dedinhos tão gordinhos. Sempre foi um menino fofo. - Tia Vana, essa eu lembraria. Ela foi a mais genuína entre todas e não parava de apertar minhas bochechas.

- Para de mentir mãe ele era o demônio em pessoa. - Minha prima, Erica, recebe um tapa de sua mãe, mesmo aquietando-se o sorriso irônico sobressaia em sua face. 

Sorrisos e desculpas depois fui capaz de escapar daquele antro familiar sufocador. Eram tantas pessoas, todas tinham algo a me dizer. Parece que passar um ano em coma desperta a confissão de seus próximos. 

Apoio meu corpo na parede detrás da casa. Foi legal desbravar minha própria residência, Luia me ajudou e ela era uma ótima parceira. A única que me tratava como se eu não fosse doente. Minha mente vem girando em torno do porquê minha mãe às vezes exagerar em seus cuidados. Eu não preciso mais de tantas checagens mas ela fazia questão de faze-las. Vou considerar que ela também teve de lidar com seu filho desacordado por um ano, olhando por esse lado, seu exagero não é inconsequente. 

Também estava nos meus planos visitar meu apartamento alugado, chequei se ainda estava no meu nome e tudo continuava o mesmo, assim como os depósitos mensais. E tudo indicava que o casal mexicano continua a morar lá.  

Encaro o céu que exibia algumas de suas estrelas, de modo tímido a lua saia detrás das poucas nuvens presentes. Me ocorrendo um pensamento vago demais para eu conseguir entender,  pego meu celular e digito os números que fluem naturalmente de meus dedos, sem errar um digito. 

- Gulf? Está tudo bem? -  Como eu ainda lembrava o número dele eu não sabia. Mas eu tinha certeza que era dele. Eu sentia que precisava falar com ele. 

Jogo minha cabeça para trás, a apoiando na parede. 

- Sim e você? - Houve um longo silêncio, o que me permitiu ouvir vozes altas e femininas ao fundo. - Onde você está? 

Desconheço o lance autoritário em meu tom. 

- Numa reunião com uns amigos. - O fundo se torna mais abafado e distante. - E você? Por que me ligou, está precisando de ajuda? 

Sua voz soava genuinamente preocupada. 

- Eu ligava para você para pedir ajuda? 

- Não. Você nunca me ligava para pedir ajuda. - Esfrego a palma de minha mão contra minha calça. Eu vinha fazendo esse gesto quando me sentia ansioso. Talvez fosse uma mania minha antes do coma retornando. 

- Estou numa festa de família, acho que conheci até mesmos parentes que nunca me viram antes do acidente. - Não entendia a necessidade de conta-lo sobre, mas estava lá, estava em mim. 

E quando consigo escutar sua risada, os movimentos da minha mão para. 

- A família Kanawut é maior que a população de certos países. - Sorrio. 

Esse diálogo era o total oposto do nosso anterior. Que eu pensei ser o último. Falar pelo telefone sempre foi mais fácil.

- Por que você me ligou Gulf? - Suspiro e minha mão volta a se mover. 

- Não sei. Quando dei por mim eu já digitava o seu número. - Fecho meus olhos.  - Eu não sei Mew.

Faltava tanta coisa em mim. Eu me sentia vazio. Tentei ignorar meus sentimentos pois pensei que eram muitos para lidar de uma vez só. A terapeuta continuava a me dizer que com o tempo eu os organizaria, mas nada acontecia. Eles sumiam depois de um tempo. E eu me sentia oco. As lembranças não voltavam. Eu tinha urgência em lembrar porque algo estava errado. Eu me sentia estranho na maioria das vezes e nunca sabia do motivo principal. 

As lacunas continuavam intactas, mesmo quando respondiam minhas perguntas. 

- Mew... eu não sei o que está acontecendo... eu não me lembro. - Murmuro. 

Sabia ser o óbvio, mas era a primeira vez que eu disse com todo o peso que carregava. 

Não lembrar continuava a ser assustador. 

- Eu não me entendo. Eu não me conheço. As pessoas continuam a me chamar de travesso, demônio, inconsistente, o que eu era afinal? Um bom garoto ou não? Por que você não me ama mais? Eu quero saber tudo, mas ninguém preenche o que está faltando. - Sentia minha voz sair entre suspiros, arrastada e desesperada. 

- Gulf eu te amo.  - Foi tudo o que ele disse. E foi o necessário para me fazer paralisar. - E vai ficar tudo bem. Você pode me ligar toda vez que precisar desabafar. 

Talvez eu seja o culpado.

Abro meus olhos esperando vê-lo mas encaro a noturna varanda. 

- E se eu nunca conseguir lembrar de quem eu sou? E se eu me sentir estranho a mim mesmo para sempre? - Meu peito subia e descia dificilmente. Era como seu eu estivesse me forçando a respirar.

- Então você vai se construir novamente. Cada detalhe, cada gosto, olhares e vontades. Você vai se recriar do jeito que quiser. Gulf, você é um criador por natureza, é só dar uma olhada em seus trabalhos. Você consegue dar uma casa todo um novo estilo, você traz a  qualquer lugar a sensação de abrigo. Se por acaso, não conseguir recuperar tudo o que te compunha, faça o que você faz de melhor. Eu acredito em você. E para mim, você ainda é o mesmo, a única diferença é que agora você pode ser uma nova versão de si mesmo.  

Sua voz tão doce me enlaça, algo se espalha pelo meu peito. Algo quente. 

- Se ainda estiver escutando ... fique bem bebê.

Bebê

- Mew... - A linha é cortada. Ele desligou. 

Toco meu rosto.

Quando eu comecei a chorar? 

Guardo meu celular e busco em vão por um lenço. 

- Droga. 

O que estava acontecendo dentro de mim não era comparável. Eu não havia sentido nada parecido com isso desde que acordei. 

Levando minha mão ao rosto mais uma vez  e me surpreendo com os cortes rasos e avermelhados, pequenas gotículas de sangue sobressaindo-se. Fecho minha mão, entendendo como eu me machuquei, mas eu não sentia dor alguma. 

A conversa me distraiu tanto a ponto de não notar que chorava e me machucava? Era sobre isso que Mew estava falando... sobre eu me machucar quando estava com ele?

Volto a encarar minha palma. Mas isso não era culpa dele. Ele não me disse nada que não pudesse me fazer sentir melhor. Fui eu o responsável por ligar para ele, mesmo que de modo inconsciente. 

Talvez eu esteja errado. O Gulf antigo estava aqui e aos poucos acordava de seu próprio coma. Eu me fiz mal e não entendia o porquê. Não houve dor, não houve nada além da voz de Mew. 

Gulf eu te amo. 

Se ele me ama...Ele me ama. 

Talvez eu seja o culpado

Quando tudo der errado, segure o meu coração (Reeditando)Where stories live. Discover now