O amor existe diante do esquecimento?

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Mateus

Era como se houvesse uma festa privada regada a tambor em minha cabeça. O barulho mental dificultava meu próprio equilíbrio. Me apoio nas paredes enquanto caminhava para o banheiro. Não iria me arrepender de ter saído ontem à noite, pois foi divertido, mas, com toda certeza, me repreendo por não ter comido alguma coisa antes de me embebedar. 

Fazia tempos que não ia em um clube e de fato me divertia. Quer dizer, a sensação de alegria foi basicamente proporcionada pelo tanto de álcool que ingeri e minha disposição em me fazer relaxar por aquela noite. A pergunta: se valeu a pena? Diante do meu reflexo, os olhos vermelhos e sentir como se minha língua estivesse inchada, diria que não. 

Guio-me pela memória espacial que tinha de meu apartamento, ficar de olhos fechados era bem mais reconfortante. Como esses jovens conseguiam ficar tanto tempo naquele emaranhado de fumaça de origem duvidosa e não ficaram cegos ainda? 

- Bom dia, Mateus. - A surpresa me fez paralisar. Deus segurou meu coração? Porque sentia como se ele houvesse parado de bater. Eu me questiono se cheguei a tomar drogas psicodélicas e estava tendo reação adversa.

Forço-me a abrir meus olhos, o incomodo de mantê-los aberto diminui quando eu vejo a imagem de Gabriel. 

Seu sorriso era doce de encontro a mim. Sentado na bancada da cozinha, com uma xícara de café em sua mão, a sua xícara de café. De repente, meu coração volta a bombear sangue após sua pausa errônea, agora, meu órgão vital acelerava a ponto de pensar que talvez eu estivesse tendo um ataque cardíaco. 

- Bom dia, Mateus. Eu preparei o café da manhã. Eu... eu vou fazer as compras  para o armazém. Ah, Naila foi para aula dela mais cedo hoje.  - Julia, minha governanta,  se pronuncia e a encaro pela primeira vez, sem tê-la notado ali, ao lado de Gabriel. Ela sorri, parecendo nervosa e após deixar um beijo na bochecha dele, sai do apartamento em uma corrida. 

- Espero não estar te incomodando. - Gabriel mantinha aquele sorriso. E parecia apenas surreal demais vê-lo ali. Confrontando diretamente o que eu já havia consolidado como impossível. 

- Você parece bem. - Minha mente não estava muito de acordo com o meu corpo, a dor de cabeça retornou ou ela sempre esteve aqui e eu me esqueci dela quando o vi, que seja, parecia pior. Ignoro as chamadas de meu corpo diante do homem que venho relutando para não lembrar, me movimento em passos lentos, porém, mais seguros agora que antes. 

- Sim.

Era estranho ter ele aqui. Nunca pensei que algo assim me ocorreria, tudo naquela casa gritava de acordo com a personalidade dele, não a minha, entretanto, nesse momento, não parecia mais. 

Me sento a sua frente após encher meu copo de café, encaro a face jovem e bonita. Ele não havia mudado, seus cabelos voltaram ao tamanho que geralmente ele gostava. Tudo parecia o mesmo, menos os seus olhos; para ser mais explícito, a forma como ele me olhava. Isso mudou. Gabril estava me analisando, seus olhos moviam-se pela minha face, provavelmente captando a merda que eu estava e nada demostrou se chegou a alguma conclusão. 

Sorrio incrédulo. Ele não se lembrava de mim. Nem um pouco. Era tão fácil de lê-lo agora, antes eu tinha certa dificuldade, se não fosse pelo seus sentimentos, que ele só deixava claro quando queria, eu não conseguiria ver por detrás de sua face. Mas, nesse momento, eu o alcançava, e ele não tinha nada em direção a mim, a não ser sua formação ética. 

- Eu vim aqui porque eu queria conhecer essa parte do meu passado e pôr um fim. - Não doeu tanto quanto pensei que doeria. Eu já esperava por isso. Foi quase um corte superficial, mas que ainda fazia sangrar. Pelo menos ele não perdeu sua essência de sempre ir direto ao ponto desejado. - Desculpe vir sem avisar, se você não tiver nenhum compromisso hoje, poderíamos conversar? 

- Claro. Só me deixa tomar um analgésico. - Levanto antes de receber sua resposta, levo meu café comigo e vou até o banheiro próximo ao corredor. 

Deixo meu corpo recair sobre a porta fechada. Fecho meus olhos e inspiro. Esse era o momento pelo qual eu sabia, mesmo Gabriel perdendo a memória, eu sabia que isso iria acontecer. A dor no meu peito só não era mais forte que a de minha cabeça. Me ocupo a pegar os analgésicos e tomar dois. Talvez um deles releve o aperto aqui dentro de mim. 

- Eu decorei aqui, certo? Eu lembro de ter visto a planta em meus arquivos salvos no pc. - Gabriel estava no meio da sala de estar, encarando os arredores. Ele falava com tanta naturalidade, como se fossemos amigos. 

- Sim. Você queria viver em um espaço menos grosseiro e mais simplista, chegando ao minimalista. E amarelo era a saída. - Gabriel sorri aberto para mim antes de começar a se mover pelo cômodo. 

Eu era uma cápsula do tempo, mantinha todas as nossas memórias e ele era o próprio tempo, que levava consigo as lembranças, as espalhando nas terras sem se preocupar se ficarem perdidas para sempre. 

- Posso ver o apartamento? - Seus olhos brilhavam de curiosidade e eu não esperava tanto. 

- Claro. - A casa é sua também. Mas mantenho esse pensamento fora da audição dele. 

Gabriel passa por mim e caminha em direção ao corredor. Eu não sei bem o que fazer, estava confuso em como deveria me portar diante dele. Então, decido não o seguir e sentei-me no sofá. O analgésico estava fazendo efeito e, por Deus, conseguia ouvir meus próprios pensamentos. E sentar foi necessário para resguardar energias. Lidar com Gabriel não estava em minhas prioridades de hoje. Meus sentimentos estavam atordoados e não de um jeito bom, de algum modo eu fomentei um certo tipo de lidar com o que seja que estava acontecendo, mas agora, Gabriel desestabeleceu todo um falso prisma de decisões anteriores as quais eu me agarrava. 

Eu não sei por quanto tempo ele ficou a rodear pelo apartamento, em certo ponto achei que estava delirando e que ele não estava de fato no mesmo local que eu. A última vez que Gabriel pisou aqui foi um ano atrás, uma semana antes do acidente. E era um Gabriel completamente diferente desse que estava aqui. Esse de hoje, parecia mais leve, mais calmo e não havia a turbulência que geralmente acompanhava os seus olhos. 

- Eu fiz um bom trabalho, aqui é bem legal. Eu olhei o armário, identifiquei as minhas roupas. Obrigado por mantê-las. - Eu queria gargalhar por sua fala. Eu era um colega de quarto que manteve os objetos de meu companheiro enquanto esse estava em coma? Por que era como ele fazia parecer. 

Nunca experienciei Gabriel me tratando como amigo. 

- Você não parece bem. - Ele murmura e noto que sua voz agora soava próxima, abro meus olhos para encontra-lo sentado a minha frente na mesa de centro. 

- Desculpa minha aparência, foi uma noite conturbada. - Ele acena de um jeito fofo. Era possível ele estar mais adorável que antes? Eu desejava tocá-lo apenas para saber se ele era real. 

- Se você preferir, podemos marcar outro dia. - Nego com um aceno de cabeça. 

- Você quer saber sobre nós, vamos lá. - Quanto mais cedo começarmos, mais cedo poderíamos finalizar. 

- Ok. - Havia uma determinação incomodante em seu olhar, me atento para o que iria perguntar, pois antes de tudo, eu seria verdadeiro.

Quando tudo der errado, segure o meu coração (Reeditando)Where stories live. Discover now