E se eu não quiser voltar

510 96 5
                                    


Guia sugava o líquido espeço do milkshake, seus olhos escuros grudados em seu celular. A normalidade de nosso momento me deixava menos ansioso. Nas últimas semanas venho notado como eu reagia a certas coisas, se eu pensar muito acerca do meu futuro, começo a me sentir pressionado; se analiso as informações que tinha sobre mim e tentasse entender a minha personalidade, minha mãos começavam a se mexerem sozinhas contra a minha perna; e se eu quisesse me sentir sufocado e angustiado, pensaria em Mew. 

A minha saída era me distrair 24/7. Ou eu estudava, saia com alguns amigos, descobria a vida de Luia. Ela era uma menina muito fácil de lidar e parecia confortável comigo. Sabia que seu namorado se chamava Harry, ele era fã de kpop, estudava história e trabalhava como professor substituto numa instituição privada. Ela pretendia reformar seu apartamento com o dinheiro que ganhava trabalhando lá em casa e que provavelmente dali a um ano poderia enfim se demitir, pois estaria terminando sua faculdade. 

Escutar Luia falar sobre sua vida me deixava feliz. Ela sabia de onde veio e para aonde queria ir e com quem. Era bonita a forma como seus olhos brilhavam ao falar de seu namorado ou como ela torcia para que as horas passassem para poder enfim vê-lo. Por mais que tentei amontoar em algum canto dentro de mim, o sentimento de inveja estava lá. 

- Você devia ir ver a psicóloga. Quando você frequentava sempre parecia menos alterado. - Guia falava com o canudo em sua boca e seus dedos atentos a tela do celular. 

- A verdade é que eu tenho medo do que ela vai falar. - Eu não era idiota, se Glória queria esconder sobre minha psicóloga alguma coisa havia ali. E, considerando o quanto protetora ela era, não achava ser boa coisa. 

- Então fique na dúvida. Eu não posso falar sobre você mesmo porque você escondia muitas coisas de mim e olha que eu sou fofoqueira e gosto de me informar da vida de todos os meus amigos e não amigos. - Guia abaixa seu celular estendendo sua atenção em mim. - E Mew? Você disse que falou com ele. 

- Falei. Mas foi rápido, nada demais. Ele também não me disse muita coisa. Acho que todos pensam que ele me fazia mal. - Murmuro tocando meu pulso. 

- Eu não acho que ele te fazia mal. Eu era a maior fã de vocês dois juntos. Fala sério, era tão fofo. - Sorrio para a expressão de derrota de Guia, mas rapidamente se forma uma composição séria. - Olha, eu vou falar sobre a minha perspectiva de você e a partir do que você me contava. 

Guia morde o lábio inferior e faz uma careta, ela estava incerta. Ela fazia isso quando não tinha certeza se deveria fazer algo!  Meu coração erra uma batida, me pareceu déjà vu. Isso era uma lembrança?

- Eu acho que você forçava ser alguém que não era para Mew. Eu não entendia o porquê mas você sempre mudava um pouco quando estava com ele. Acho que é por isso que Luke não apoiava o relacionamento, era visível que você mudava, mas ele parecia estar apaixonado por você. E talvez esse seja o problema? Você forjou ser alguém que não era e ele se apaixonou por essa idealização? Eu não sei, é só uma suposição. Mas explica o porque acham que ele te fazia mal. 

A minha estupefação por ter uma lembrança, ou algo próximo a isso, foi aos poucos sendo substituídos pelo significado das palavras de Guia. 

- Eu discordo totalmente de Luke. Você o amava e ele te amava, mas você era meio intenso demais. Eu lembro quando você me contou estar afim dele, eu te encorajei, não que você precisasse de encorajamento de qualquer jeito. Você sempre teve o que quis e ele não foi uma exceção. Foram longos meses e você não desgrudou dele e eu juro que a sua sorte é ser bonito porque você foi muito, muito, muito persistente. 

Guia joga seus cachos para trás e parecia ter mais coisas para falar.

- Então, quando você me disse que conseguiu ficar com ele, uau, eu não poderia negar que você era bom. Só que nesse meio tempo, eu não vi como você fez isso. Só sei que de repente saímos juntos e você agia como um cara super calmo, nem um pouco mimado, você meio que sumiu de nossas festas, eu pensei que Mew era um pastor porque sua mudança foi tipo 360°. Foi meio bizarro, mas o amor tem disso né. Eu acredito no amor Gulf e você parecia melhor, tinham dias, antes de Mew, que você era uma bagunça completa, depois de Mew esses dias quase eram inexistentes. 

- E então? - Sentia que viria um 'porém'. Ela toca seu próprio queixo e expira sonoramente.

- E então você me ligou e disse que havia arruinado tudo. Que o perdeu. Isso foi um mês antes do acidente. Eu não contei nada para Luke, porque se não aquele chato iria começar a falar um monte de bosta. Mas na época você não chegou a me contar o que aconteceu, só repetia que Mew iria embora e você não sabia o que fazer. - Guia fecha os olhos, como se controlando. Quando os abre novamente havia lágrimas incertas se caiam ou não. - Nós somos amigos a anos, eu sei que você é surtado, mas e dai sabe? Eu também sou e Luke se diz perfeito mas ele é pior que nós dois juntos. Você estava se forçando muito Gulf e eu não disse nada porque você parecia feliz e eu nunca te vi sorrindo tão grande com alguém daquela forma. Eu acho que você estava com medo de Mew ver esse lado sabe... 

- Que lado? - Guia parecia a um fio de sair correndo. - Me conta Guia, ninguém me conta nada sobre isso, por favor, seja sincera comigo. 

- Você tinha crises Gulf. Muitas delas. Eu te ajudei com algumas. - Guia abaixa os olhos. Eu queria que ela continuasse! 

- Que tipo de crises?

Guia murmura aborrecida. 

- Olha eu não quero falar isso. - Ela parecia contrariada.

- Mas você começou a falar! Você disse que era minha amiga, por que não pode falar? - Uma certa realização me atinge enquanto lia os olhos dela. Não era possível, era? - Por acaso, minha mãe conversou com você? 

Seu silêncio foi resposta suficiente. 

- O que ela disse? 

- Sua mãe é meio assustadora Gulf, eu prometi que não falaria nada demais. - Que porra era aquela? Sorrio, incrédulo. O que estava acontecendo?

- Guia ou você me conta ou eu vou direto a ela. E meu humor não está muito bom agora. - Os olhos dela se arregalam, rapidamente ela estava sobre mim, suas mãos em meu rosto. 

- Gulf! Por um momento você foi você de antes. Eu fiquei arrepiada. - Ela estende seu braço bem diante de meus olhos. Podia ver a elevação de sua pele. Guia sorri e me da um tapa leve antes de volta a se sentar. - Uau. O jeito que você falou... foi tão... uau.

Me aquieto. Era a primeira vez que me diziam que agi como antes. E não me sentia confortável com esse anúncio. O Gulf de antes do coma não parecia ser alguém que eu queira ser agora. 

- Dane-se sua mãe. Quer dizer, não literalmente, você entendeu! - Sorrio pelo repentino devaneio. - Sabe quando uma pessoa ansiosa tem seus episódios? Então, era isso. Você era gatilhado por algo e você surtava. Só que os seus eram bem pesados. Você tinha tendência a se machucar. E se por acaso você brigasse com Mew, era sempre o mesmo. Numa dessas vezes, acho que foi uma das grandes brigas, você ficou debaixo d'água gelada por sei lá quantas horas, só sei que quando eu cheguei você estava congelando. É isso. 

Guia sorri, mas estava apenas querendo afastar o desconforto. Eu por outro lado, ingressei no clima e me abasteci das informações. Minha mãe não queria que eu soubesse que eu tinha crises. Olho o meu pulso, lembro-me das palavras de meu irmão, de Mew. Eu tinha razão, não era Mew... era eu mesmo. Eu me machucava. 

- Seria bom para você ver sua psicóloga. Ela pode te ajudar e te pôr de volta nos trilhos de quem você era. 

- E se eu não quiser voltar a ser quem eu era? - Guia me encara quieta. - E se eu quiser deixar esse Gulf para trás? E se eu quiser recomeçar e viver sem aquelas memórias e criar novas? 

- Você pode! Mas por que não quer lembrar? Todos nós temos nosso lado ruim Gulf. 

- Eu realmente não quero saber mais desse lado, quanto mais eu entendo com mais medo eu fico de voltar a ser ele. 

O Gulf de antes me provoca a todo momento e ele ainda estava aqui.  A cada dia eu o sentia um pouco mais, sua forma se solidificava. Mas eu não queria ir até lá, eu não queria ser ele mais uma vez. Havia um sentimento medonho dentro de mim, quase uma necessidade de sugar qualquer coisa para ver se tapava o estranho vazio. O vazio nunca ia embora. Eu preencho com as histórias de Luia, com as piadas sem graça de meu irmão, com as saídas com meus colegas, no entanto, ainda estava lá, vivo e se espalhando. 

- Eu não quero voltar a ser ele. - Murmuro.

- Mas não tem dissociação, você é o mesmo. 

 Não eu não era. 

Quando tudo der errado, segure o meu coração (Reeditando)Where stories live. Discover now