CAPÍTULO 01

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LUCIAN

Essa cidade tem um clima ameno, pouco movimento, uma boa estrutura, poucos habitantes, baixo índice de criminalidade e parece ser possível encontrar um bom emprego que faça uso da minha formação como pedagogo. Resolvido. Sem pensar muito mais, vou até o motorista e peço pra pegar minha bagagem. Vejo que ele fica um tanto surpreso, pois minha passagem está compra pra rodar mais uns 500 km pra frente. Mas ele não sabe que eu não tenho um lugar pra "chegar", então não faz diferença se será aqui, ou em qualquer outro lugar do mundo, o efeito será o mesmo: eu continuo sozinho. Melhor deixar o chororô pra quando eu encontrar um hotel, afinal um homem adulto, barbado, com mais de 1,80 metros chorando no saguão de uma rodoviária não seria uma imagem adequada pra se deixar na memória dos meus futuros vizinhos.

Pegar um táxi em uma cidade pequena tem suas vantagens: fiquei sabendo de notícias quentíssimas de pessoas que eu nunca nem ouvi falar. O motorista, com o jeito tranquilo de quem está acostumado com pessoas gentis, me conta todas as últimas fofocas dessa cidadezinha que apenas aparenta ser calma, mas parece um caldeirão de acontecimentos. Quando paramos em uma esquina, fico um pouco receoso com a grande quantidade de carros em fila, que se movimentam lentamente. O motorista (seu Valdir, me lembro do nome dele porque ele repetiu muitas vezes, a fim de me fazer lembrar de que se no futuro eu precisasse de um táxi, não me esquecer de ligar pra ele) me explica que é o cortejo fúnebre de dona Cátia, esposa do seu Geovane, que faleceu no fim da semana de infarto.

-Moça nova, bonita. As três filhas tão pequenas. E o marido? Fiquei sabendo que quando viu a esposa morta, ficou tão assustado, que tiveram que internar. Pobre homem. Pra ele, era Deus no céu e dona Cátia na terra. Nem quero pensar no que vai ser a vida desse coitado de agora pra frente. Vai ter que criar sozinho as três filhas que estão começando a ficar mocinha...

A tagarelice não parou por aí, mas eu deixei de escutar. O fato de eu não ter dito uma única palavra desde que eu entre no carro parece não assustar o senhor, que conversa alegremente sobre tudo, mudando os tópicos da conversa em uma velocidade assustadora. Ele não pareceu perceber que eu nem sequer dei um endereço específico, apenas perguntei onde tinha um bom hotel com preço acessível, e ele me mandou entrar no carro e começou o monólogo sobre as pessoas que eu muito em breve vou conhecer. Não é que eu queira ser grosso, ou que eu não goste de conversar. Mas no momento, se eu começar a falar, vou me derramar em lágrimas. Então sinto muito, seu Valdir, mas nossa conversa calorosa vai ter que esperar pra outra oportunidade. Quando chegamos ao lugar que ele me disse ser ótimo, eu percebi que na verdade é uma casa grande que foi dividida em quartos pra alugar, e não necessariamente um hotel. Seu Valdir me deu uma piscadinha marota e disse baixinho:

_Aqui é mais conveniente pra quem quer ficar muito tempo. E como o senhor não parece saber pra onde ir, devia conhecer a Zuleica antes de decidir. Pega meu cartão, qualquer coisa que precisar, pode ligar que eu ajeito pro senhor.

E simples assim, eu fui recebido na cidade. A sensação foi tão boa que até subiu um nó pela minha garganta. Quem diria que a tensão que eu vivi nessas últimas semanas me transformaria nessa gelatina chorona. Mas não parou por aí. Ele me levou até uma senhora com a aparência de uma boneca de porcelana, que estava bordando numa cadeira em frente a grande construção.

_Zuleica, trouxe um rapaz aqui pra você. Cuida bem dele aí, tá? Tô indo que tenho muito pra rodar hoje antes de fechar o dia. Aliás, eu nem perguntei seu nome. Posso te chamar de quê?

A interrogação direta me deixa um pouco constrangido, mas estendo a mão e me apresento:

_Meu nome é Lucian, obrigado por ter me trazido até aqui.

_Ah, meu filho. Nem precisa dessa cerimônia toda. Esse velho fofoqueiro só queria conhecer a "carne fresca" pra espalhar que tem morador novo -a senhora com jeito de boneca diz brincalhona.

Percebi no ar o afeto entre os dois, algo característico de cidades pequenas. E a única certeza que eu tive desde que esse inferno começou, foi que eu escolhi uma boa cidade pra viver. Espero conseguir me integrar aqui, fazer parte dessa comunidade. Espero construir aqui o que eu não consegui manter no meu local de origem.

Depois de me levar até o que seria "meu lar" a partir de agora, a doce senhora -Zuleica. Não posso chamar ela de boneca ou doce senhora pra sempre- me convidou pra uma refeição de boas vindas, e pareceu realmente satisfeita quando eu concordei com o convite. Comemos com a família dela, e não em um refeitório, algo que eu estranhei de início. Mas quando ela começou a me apresentar os integrantes da família, eu percebi que não teria um refeitório. Eles eram realmente como uma família. Além de mim, moravam com dona Zuleica mais 3 moças e 5 rapazes, a maioria vinda de fora da cidade pra trabalhar ou estudar.

E foi com uma sensação de pertencimento que eu me despedi deles depois da janta, antes de ir pra cama. Todos me receberam muito bem, como se eu realmente fosse um parente da dona. Depois disso, não é mais tão impossível imaginar que eu ainda posso ser feliz. Eu quase consigo bloquear as palavras dos meus pais agora. Mas infelizmente, elas continuam batendo soltas nos meus ouvidos. Frases perdidas. Farpas que não matam, mas que doem pra caramba. Eu não quero pensar nos que eu deixei agora.

Depois de terminar o banho, entrei sob os lençóis sem me preocupar em vestir pijama. Amanhã mesmo vou começar a procurar por um emprego. E depois disso, vou viver o lema dos viciados em recuperação: um dia de cada vez. Depois dos acontecimentos do dia, de uma viagem longa e de semanas exaustivas, pela primeira vez em muito tempo eu consegui dormir bem. Um sono sem sonho.

Quem pode me julgar por desejar ser aceito e amado por ser quem sou, sem ser criticado ou humilhado? Esse foi meu primeiro pensamento ao acordar, e quando me lembrei que não teria que enfrentar uma batalha antes do café da manhã, automaticamente senti fome. Depois de tudo arrumado, me olhei no espelho. Minha aparência não é ruim. Sou um homem robusto, 1,83 metros, pele morena, cabelos e olhos escuros, todos os ossos no lugar e uma barba por fazer que me faz ter um estilo meio largado. Eu gosto do resultado. Pareço alguém responsável, com quem você pode deixar seus filhos, porque eu sou capaz de cuidar da educação deles. E é exatamente essa a minha profissão: eu sou professor. E amo apaixonadamente o que eu faço. E essa é mais uma das minhas características que meus pais insistem que é um defeito.

Saio de casa com meus currículos na pasta, mesmo sabendo que não existem muitos lugares pra distribuir. A cidade conta com apenas 12 escolas, e pra entrar no corpo docente da maioria delas seria preciso ser aprovado em um concurso público, mas isso não me impede. Quando estou quase chegando na rua, dona Zuleica me chama pra me perguntar se eu já tomei café, e novamente sobe um bolo de emoção pela minha garganta, essa sensação de ser cuidado por alguém. Digo que vou comer na padaria, mas ela insiste e eu acabo por ceder e como junto com todos. Mas quem imaginaria que a decisão de tomar café da manhã com ela nesse meu primeiro dia na cidade iria mudar minha vida irrevogavelmente?

Era uma vez: um quase conto de FadasOnde histórias criam vida. Descubra agora