CAPÍTULO 08

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LUCIAN

Não sei como consegui chegar em casa. Derrapei com a moto algumas vezes, e acredito que errei o caminho mais algumas. Mas acabei chegando. Não sei bem o que sentir, e é como se eu estivesse anestesiado. Estou surpreso, chocado, confuso, irritado e com medo. Não esperava que Geovane faria algo assim. Não me aproximei da família dele com a intenção de seduzir ele. Eu quero ajudar, é verdade. Mas isso não dá a ninguém o direito de presumir que estou interessado nele. E estou com medo de que ele tenha descoberto sobre minha sexualidade, por isso me beijou.

Estou me preparando pro inferno que vem logo a seguir. Pela primeira vez desde que eu cheguei nesse cantinho que eu chamo de lar, hoje eu chorei de frustração. Já faz quase um ano que eu moro aqui. Nesse período, eu me apeguei aos moradores da casa de Dona Zuleica, e conheci a história de todos eles. Me sinto próximo, mais integrado a essa família daqui do que me senti a vida inteira com a minha família biológica. Não estou pronto pra ver eles me olhando de lado. Não quero que os pais comecem a mudar os filhos de escola porque tem um professor gay no corpo docente.

O pânico de ter que recomeçar em outro lugar bateu com força. Não consegui dormir, passei a noite tremendo e ansioso com o que o futuro reserva. Estou com medo de passar por tudo de novo. Eu amo a forma como a minha vida está. Não quero ninguém pra me expor. Quando o sol estava quase nascendo, senti que um raio de luz entrou no meu pensamento: Geovane está carente, a esposa se foi há quase um ano, e eu tenho sido uma presença constante ao redor da família dele. Ele deve estar confuso, e deve ser por isso que ele me beijou. Por mais que me doa me afastar das minhas meninas, eu preciso fazer isso. Antes que a confusão aumente ainda mais, e se torne irreversível. Esperei a hora que meu irmão mais velho vai estar acordado, e então liguei pra ele.

-Alô.

-Oi mano.

-Lu? Puta que pariu, seu arrombado. Depois de quase um ano você lembrou que eu existo? Já tinha encomendado sua alma pra São Pedro. Por onde você anda?

-É uma história um pouco longa. Luana está por perto?

-Não. A gente não está muito bem, ela foi pra casa da mãe dela.

-O mesmo problema de sempre?

-Sim. Mas tenho certeza que você não me ligou pra perguntar sobre minha mulher. O que está acontecendo?

-Eu preciso de um favor.

-Pode falar. Desde que não seja dinheiro, eu tô disponível pra ajudar.

-As férias vão começar na semana que vem. Posso ir pra sua casa passar alguns dias? Mas sem a mãe, o pai e o Rodrigo ficarem sabendo.

-Tranquilo. Não sei se você sabe, Rodrigo fez merda, engravidou a ex namorada, e o moleque nasceu tem uns quatro meses. Nós somos tios. Mãe e pai passam o dia babando no Gabriel Neto. Nem lembram que o resto de nós existe.

Me senti muito estranho com essa informação. Por mais que meu convívio com minha família não seja muito pacífico, e o único com quem eu realmente me dou bem é o Marcos, saber que eu sou tão dispensável doeu um pouco. Eu tenho um sobrinho, e não fiquei nem sabendo disso. Não é como se eu estivesse incomunicável. Marcos sabia que eu precisava de um tempo, e respeitou isso. Mas meu e-mail é o mesmo há quase 10 anos. Saber que meu irmão mais novo me odeia por ser quem sou me empurrou um pouco mais fundo no fundo do poço.

-Mano? Você ainda tá aí? Lucian?

-Tô aqui. Só estou um pouco surpreso em saber que temos um bebê na família.

-E o moleque é bonitinho, acredita? A cara do Rodrigo. Espero que pelo menos o comportamento dele puxe pela mãe. Acredita que o infeliz não quis o nenê? A mãe e o pai obrigaram ele a registrar, mas ninguém consegue fazer ele cuidar do menino. Diz que é muito novo pra ter filho. Ele já tem 23, e ainda quer ser irresponsável. Pra você ver como são as coisas. Eu tenho 30, morro de vontade de ser pai, mas Luana não quer. Ele tem um filho e não aceita. Tô muito puto com ele também.

Enquanto meu irmão fala constantemente, como sempre, eu apenas escuto. Minha mente está muito longe pra conseguir acompanhar. Quando terminamos a ligação, liguei pra uma colega, pra ver se ela poderia me ajudar. Eu substituí algumas aulas dela ao longo do semestre, e nunca cobrei. Ela concordou em pegar minhas aulas do resto da semana, eu arrumei uma mochila com algumas coisas, peguei minha moto, e tentei sair de fininho. Mas dona Zuleica já estava sentada na sala vendo a missa pela TV. Tive que explicar que ficaria fora por alguns dias, mas que voltaria logo. Ela reclamou que as amigas da Estela e Esther iriam vir passar o fim de semana aqui, e eu vou perder a oportunidade de conhecer boas moças. Depois de saber disso, guiei minha moto um pouco mais depressa só por medo de não estar longe o bastante quando elas chegarem.

Sei que fugir é uma atitude covarde, e sei que eu deveria ficar e conversar com Geovane sobre o acontecido. Mas nesse momento eu não consigo. Só de pensar que isso vai afetar minha convivência com as meninas, eu sinto um tremor no espírito. Não quero não poder estar com elas mais. Quero estar com elas quando elas precisarem de mim. Mas não consigo lidar com esse beijo de maneira consciente agora. Então o que eu posso fazer é me afastar e esperar a poeira baixar.

Era uma vez: um quase conto de FadasWaar verhalen tot leven komen. Ontdek het nu