CAPÍTULO 03

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LUCIAN

Quando eu escolhi me mudar pra essa cidadezinha, nunca imaginaria o nível de tranquilidade e satisfação que eu poderia atingir. Tão logo cheguei, eu fui aceito e integrado a essa comunidade. E pra uma pessoa como eu isso é muito importante. Tão importante que ainda sinto vontade de chorar sempre que me lembro de quando comecei a dar aulas, sonho que vinha sendo adiado já tem algum tempo.

Descobri que as duas mocinhas que perderam a mãe tão precocemente também são minhas alunas, e no decorrer desse bimestre tenho visto o esforço que fazem pra não serem peso pros outros. Ambas são muito responsáveis, e diria até que são muito maduras pra idade. Mas enquanto Manuela tem se tornado cada vez mais mal humorada e briguenta Mariana parece cada vez mais com uma pessoa pacata e acomodada.

E eu acabei me apegando profundamente a elas. Hoje, com o fim do bimestre, estou preocupado com a forma como elas vão lidar com o ócio e a ausência da mãe. Sei que já tem quase 4 meses que Cátia faleceu, mas elas parecem não estar lidando com a situação muito bem. Algumas vezes eu vi que a expressão delas muda sempre que o pai chega pra buscar elas após a aula. Como se não quisessem que o pai soubesse que elas não estão bem.

Mas enquanto não houver nada que eu possa fazer, vou deixando o tempo passar. Dona Zuleica tem estado em uma cruzada pra me arrumar uma namorada, e eu não tenho coragem de desencorajar a doce senhora. E nem tenho coragem de interromper a situação, explicando que sou gay. No fundo, eu tenho medo de que quando as pessoas daqui souberem sobre isso, vão começar a me tratar como meus pais sempre fizeram. Ainda não estou pronto pra ser olhado de canto de olho e ouvir cochichos atrás de mim. Me julgue quem quiser, mas estou muito apegado a vida cômoda que tenho vivido aqui. Então vou adiando a minha saída do armário (pela segunda vez), pra evitar ver as mesmas reações que vi no rosto da minha família e da minha pretendente a noiva...

Antes que eu tivesse tempo de pensar muito, as aulas acabaram, e estão todos planejando as férias. Daqui três dias é o meu aniversário, mas não tenho intenção de comemorar. Minha mãe mandou um convite pra festa de aniversário de Lucian Carlos Rangel (que sou eu) pro meu e-mail, como se eu fosse mais um convidado pra minha própria festa. E é muito lógico que eu não vou. Já me bastam os últimos 26 aniversários que eu tive naquela casa (e desses, os últimos cinco foram um inferno). Então estou decidido a passar os dias assistindo séries e comendo a comida maravilhosa de dona Zuleica, que nunca me deixou comer em um restaurante desde que eu cheguei aqui. E assim fiz até o dia do aniversário em questão, e eu resolvi que merecia um presente. Calcei um sapato, peguei as chaves da moto (outro desejo que eu tinha, mas minha mãe não aceitava que seu filhinho andasse por aí com esse veículo perigoso) e me preparei pra procurar algo que me agradasse.

Assim que saí do quarto, me assutei com o fato que que tinha uma multidão composta por todos os residentes da casa de dona Zuleica, com a mesma segurando um bolo imenso, enquanto preparavam uma mesa com docinhos. No fim das contas, não sei se quem ficou mais surpreso fui eu, com o movimento deles, ou eles, que foram "pegos no flagra" enquanto preparavam pra me surpreender. Quando vi a intenção, o nó na minha garganta fez com que ficasse impossível engolir. Não queria chorar, mas a situação tornou impossível resistir. E eu chorei. Hoje eu completo 27 anos, e é o primeiro aniversário que eu realmente tenho vontade de comemorar desde que eu me lembro.

Estávamos em processo de destruir todos os docinhos que estavam na mesa, quando minhas adoráveis alunas gêmeas chegaram com a charmosa irmãzinha e o pai com aspecto sempre sério. Só então percebi como foi que dona Zuleica tinha descoberto sobre meu aniversário, e fiquei ainda mais feliz. Recebi tantos abraços sinceros nesse dia, que acho que estou com as energias restauradas pelos próximos cinco anos. E sorri mais do que todo o ano passado, e mais uma vez, agradeci por ter escolhido essa cidade. Minha felicidade não precisa vir de um salão de festas repleto de pessoas que eu mal conheço, e que durante o restante do ano nem se lembram que eu existo.

Quando a noite chegou, e estávamos quase rolando de tão cheios, cada um foi pra um canto. me surpreendi quando a pequena Milena agarrou minha mão, me convidando pra dar uma volta com as irmãs e o pai. Não poderia recusar o pedido de uma criaturinha tão exótica e dona desse sorriso precioso. E é por esse motivo que eu me encontro nesse momento, sentado em um banco de praça, escutando os grilos e sapos, enquanto tento assimilar todos os detalhes do aniversário da pequena, que aconteceu um mês antes do meu. Só então eu percebi que tinha algo que eu não estava entendendo na situação toda: quando foi que eu me tornei tão íntimo dessa família? As gêmeas levam a irmãzinha pra sala algumas vezes, quando temos aulas depois do horário de aulas da pequena, mas nunca pensei muito nisso. E agora, aparentemente temos um vínculo. Mesmo com a estranheza da situação, estou muito feliz.

Quando me despedi da charmosa família, e encerrei um dos dias mais incríveis da minha vida, estava exausto. E mais uma vez, me joguei na cama sem me preocupar com pijamas. Essa noite, depois de tanto tempo que não tenho tido sonhos, eu sonhei novamente. Não um pesadelo. Mas um sonho muito bom. Sonhei que estava molhando algumas plantas. E foi tão real, que senti o cheiro de terra úmida. Quando acordei, estava chovendo.

Era uma vez: um quase conto de FadasWhere stories live. Discover now