CAPÍTULO 02

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GEOVANE

Eu estou perdido. Não do jeito engraçadinho, nem do jeito irônico. Eu estou perdido no sentido muito literal da palavra. Não sei o que fazer, e não tenho nenhuma noção de quando vou conseguir pensar em algo. Não me entenda mal. Não é preguiça. Não estou me fazendo de vítima. Não estou tentando chamar atenção. Eu só não me lembro como me movimentar. Nem mesmo meu pensamento consegue seguir uma mesma linha por mais do que alguns segundos. E isso está me matando. Estou confuso, ferido, cansado, magoado, destruído. Perder a Cátia foi pior do que perder eu mesmo. Ela foi minha vida por tanto tempo, e agora eu não sei seguir sem ela. Tenho um sentimento de impotência quando vejo minhas filhas tentando o possível pra me chamar de volta pro mundo, mesmo tendo que conviver com a dor imensa de terem perdido a mãe. Eu não queria ser um peso pra elas, mas não consigo evitar. Ontem mesmo nós sepultamos a minha vida, mas nem mesmo ver a terra caindo sobre o caixão em que Cátia estava foi o suficiente pra me fazer acreditar que ela realmente se foi. Meu centro, meu ponto de equilíbrio não está mais comigo, e isso me deixou sem rumo.

Hoje estou sentado na poltrona favorita dela. Ela gostava de tricotar ou ler sentada na frente dessa janela. Dizia que conseguia ver seu reino através desse espelho mágico. Não consegui dormir, a cama parece um oceano sem ter Cátia pra dividir comigo, então estou sentado aqui desde a madrugada. Minhas filhas não irão pra escola pelo restante da semana, então terei companhia constante por pelo menos mais cinco dias. Quando Milena pegou minha mão e me chamou, eu estava tão absorto nos meus pensamentos que me assustei. Com a delicadeza característica de uma criança de 8 anos, ela me pede um bolo de maçã com canela. Eu sei que ela é apenas a porta-voz do pedido, e que as mentoras estão esperando a resposta no andar de cima. Mariana e Manuela estão tentando usar essa tática desde sábado, e até hoje estiveram conformadas com minha recusa. Mas parece que meu sossego acabou. Quando disse que outra hora iria pedir pra vovó Rosália vir fazer, ambas desceram correndo e começaram a dizer de maneira desordenada, que queriam muito esse bolo. No fim das contas, entre puxado e empurrado, estou dentro do carro. Minhas adoráveis filhas estão aparentando estarem satisfeitas com o sucesso da missão.

_ Vamos na casa da tia Zuleica, papai? Eu gosto do bolo da tia Zuleica -Milena ainda está na idade mágica em que todos são parentes, e eu tenho que admitir que não estou preparado pro dia que ela vai começar a chamar as pessoas apenas pelos nomes, como as duas irmãs mais velhas já o fazem.

_ Todos concordam que a gente vá tomar o café da manhã na casa da dona Zuleica?

Minhas filhas já estão acostumadas com nosso sistema democrático, então todas votam apoiando a ideia, e depois disso nos dirigimos até a pensão de uma das amigas mais leais que nos já tivemos. Conheci dona Zuleica quando seu marido ainda era vivo, e ela vendia sacolé pra turma que saía da escola. Seu Escobar adorava nos assustar com seus "causos" aterrorizantes, mas nós nunca perdíamos uma roda de conversa. Com nossos sacolés ainda na boca, escutávamos ávidos como ele tinha se escondido em uma grota pra escapar de um "Pai do Mato". Mas nossa história preferida era sobre a vez que ele tinha fugido com a esposa pra contornar a proibição do sogro, que não aceitava o casório. Eles viveram muito bem, até o dia que uma doença levou ele embora, e deixou minha amiga desolada. Isso aconteceu tem uns 7 anos, e ela parece conseguir continuar vivendo, e não apenas respirando. Talvez eu consiga com ela a receita de como ela sobreviveu.

A casa de dona Zuleica sempre tem cheiro de café e bolo. Qualquer hora do dia que a gente entra na sala, o cheiro é o mesmo. Quando descemos do carro, vi que ela chamou um rapaz pra entrar. Eu não o conheço, deve ser um novato na região. Cidade pequena é assim: como todos conhecem todos, qualquer pessoa de fora se torna motivo de especulação. Eu percebi que enquanto dirigia, escutava as tagarelices das meninas e pensava no passado, eu não tive tempo de lamentar tanto. Não é que eu tenha esquecido a minha dor. Ela continua aqui. Mas pareceu ser possível. Senti que não posso deixar a criação das minhas filhas pra outras pessoas. Cátia nunca me permitiria ser fraco assim. Então usando a técnica de domar cavalos xucros, eu me apoiei e firmei. E vou viver o restante da vida por nós dois. Farei o que era pra ser feito até nossa velhice como se estivesse dedicando minha vida a ela, porque eu estou.

Quando entramos, Milena disparou primeiro, chamando a "Tia" e pedindo bolo. Eu invejo as crianças pela forma como lidam com a perda. Eu sei que elas estão tristes, mas enquanto as gêmeas assumiram um ar de responsabilidade, a caçula continua como a criança sapeca que sempre foi. E isso me dá esperança de que elas não deixarão eu me afundar.

_ Menino, que bom que você veio. Acabei de tirar do forno seu pão de aveia. Eu ia pedir pro Jorginho ir levar pra você mais tarde, mas se você tá aqui agora, melhor ainda.

Ser saudado assim, como se a última vez que nos vimos não fosse no velório da minha esposa, me fez sentir que nem todos irão me resumir apenas como o viúvo da Cátia. Depois dos beijos e cumprimentos tradicionais, percebi as gêmeas cochichando e encarando o rapaz novo. Até aí, tudo bem. Mas quase desmaiei de constrangimento quando Milena perguntou se podia experimentar os óculos dele, pra ver se ela também ficaria bonita igual ele. O rapaz ficou um tanto sem graça, mas emprestou os óculos. Ela tem uma fixação por óculo. Os dos avós, colegas, tios e desconhecidos, todos já passaram por suas mãozinhas gorduchas.

Depois de um café da manhã com fartura, e uma cesta cheia de quitanda pra merendar depois, nos despedimos. Dona Zuleica perguntou se eu poderia dar uma carona pro rapaz, que descobri se chamar Lucian. Então aqui estamos, conversando um pouco sobre o clima, um pouco sobre a música tocando no rádio, e um pouco sobre a profissão dele. Deixei ele na porta da escola das minhas filhas, pois eu soube que uma das professoras irá entrar de licença maternidade, e procuram por alguém pra substituir. Admito que foi agradável o passeio que dei com minhas meninas, e prometi a mim mesmo continuar fazendo isso, pelo menos uma vez por semana.

Chegar em casa e saber que Cátia não vai estar é muito doloroso, então eu vou adiando a hora de voltar. Não quero visitar meus pais. Não quero ver a tristeza no olhar deles, que refletem os meus. E não quero visitar meu sogro, pois sei que também não é fácil pra ele, perder a única filha. Então vamos ao parque, onde as meninas sentam debaixo de uma árvore e ficam anormalmente quietas. Sei o que estão pensando, porque eu estou pensando a mesma coisa: nós sempre saíamos da Feira e passávamos aqui pra tomar sorvete, e Cátia fazia questão do açaí. Mas nenhum de nós teve ânimo de pensar em sorvete. Milena, em uma rara reação de emoção e a ingenuidade típica da infância, perguntou se ela poderia visitar a mamãe, agora que a mamãe tinha se mudado pra uma estrela. Nenhum de nós conseguiu manter os olhos secos, mas engoli o nó que subiu pela minha garganta, e respondi que era só a mamãe que poderia nos olhar de longe, mas não poderia receber visitas. Mari e Manu estão tão emocionadas quanto eu, então acabamos em um abraço coletivo, e senti que ainda tinha de onde tirar forças. Que meu mundo estava abalado, mas não estava completamente destruído. E essas pequenas construtoras é que me ajudam a reconstruir. Está na hora de ir pra casa. Pra nossa casa.

Era uma vez: um quase conto de FadasOnde histórias criam vida. Descubra agora